A difícil batalha contra o cigarro

A promessa para o próximo ano era sempre a mesma: “vou parar de fumar”. Acontece que os fogos de artifícios eram estourados, o dia seguinte chegava, e o cigarro continuava sendo uma companhia diária durante o primeiro dia e nos próximos 12 meses. Apelos de amigos e familiares, aliados à necessidade de cuidar da saúde, eram acompanhados de tentativas frustradas na luta contra o vício. Era preciso procurar ajuda profissional.

Repórter há três anos no Grupo SERRANOSSA, eu, Raquel Konrad, quem sabe tenha recebido a missão mais importante de minha vida profissional ao tentar demonstrar para vocês, leitores, uma experiência que milhares de pessoas do mundo inteiro vivem: a difícil batalha para parar de fumar. Eram 12 anos de hábito, 12 anos fumando quase uma carteira de cigarro por dia, 12 anos com um inimigo entre os dedos. Mas agora acabou! Há 23 dias, estou sem cigarro. E não pensem que é pouca coisa. Esses são os 23 primeiros dias do resto de minha vida sem o fumo. E esta reportagem, narrada em primeira pessoa, quer mostrar que é possível, sim, conviver sem a companhia do cigarro.

Como tudo começou

Em 2002, ingresso na faculdade de Jornalismo na cidade de Ijuí, no noroeste do Rio Grande do Sul. Longe de minha cidade natal, Três de Maio, era necessário encontrar novos amigos. Logo me deparei com uma turma “descolada”, que se destacava nas classes da universidade. Era neste grupo que eu queria me incluir. Só que eles fumavam e eu, no auge dos meus 17 anos, nunca tinha colocado um cigarro na boca. Era a hora de treinar. Comprei uma carteira, e durante uma tarde inteira, entre repetidas tosses, consegui tragar o cigarro. No dia seguinte, já me exibia com um “pito” entre os dedos nos intervalos da aula. Desde então, nunca mais parei. Mudei-me a Bento, há quase sete anos, e trouxe esse hábito comigo.

Nas últimas semanas, fumava quase uma carteira por dia, e gastava quase R$ 135 por mês. A vontade de ser mãe, aliada ao pedido incessante de minha família, obrigou-me a tomar a decisão de largar esse “companheiro”. O primeiro passo foi procurar um médico. Sozinha eu não conseguiria. O conselho inicial era o óbvio: “nenhum remédio será o suficiente para você parar de fumar, se não houver força de vontade”. Depois, a prescrição: o remédio indicado, juntamente com acompanhamento do laboratório, custaria nada mais nada menos que R$ 800. Claro que nenhum valor é tão alto que não possa ser desembolsado em prol da saúde. Mas R$ 800 era um preço que não estava disposta a pagar. Por que não, então, buscar na saúde pública uma solução? Foi isso que fiz.

Primeiro passo

Há três meses, entrei pela primeira vez no Centro de Atenção Psicossocial para Álcool e Drogas (Caps-AD), localizado no bairro Planalto. Meio envergonhada, perguntei à atendente como funcionava o tratamento para parar de fumar. Era necessário preencher uma ficha de interesse e agendar uma consulta com uma psicóloga. Uma semana depois, encontrei-me com a profissional que, em uma conversa franca, fez todas as perguntas necessárias: há quanto tempo fumava, com que frequência, se tinha alguma doença. Depois, veio a notícia: para ganhar medicação, adesivo de nicotina, era necessário participar de quatro encontros semanais em grupo. Como assim? Conversar com pessoas que eu nem conhecia durante um mês, para poder ganhar tratamento? Fiquei “de cara”! Não me sentia preparada. Mesmo assim, agendei. Todas as terças-feiras, a partir de 18 de novembro, deveria encontrar com pessoas que, assim como eu, também estavam tentando parar de fumar. Como a procura era grande, fiquei quase dois meses esperando o dia do primeiro encontro chegar.

Surpresas positivas

Um misto de vergonha por não conseguir parar sozinha e a sensação de me deparar com tantas pessoas desconhecidas quase me fizeram ir embora no primeiro minuto sentada na sala de encontros do CAPS. Em pouco tempo, já éramos 16 pessoas dentro da sala. Gente nova, idosos, homens, mulheres. Todos eles estavam ali com o mesmo objetivo que eu. Então, entrou na sala a enfermeira Veranice Demari de Costa, ou simplesmente Vera, que conduz os grupos no centro desde 2010. Com uma voz calma e um sorriso acolhedor, ela fez cada um se apresentar e falar sobre a relação com o cigarro. Logo fiquei impressionada. Algumas pessoas ali fumavam havia mais de 40 anos. Outros relatos eram mais chocantes: a mulher que fumou ao longo da gravidez e, depois, durante toda a amamentação; o outro que deixava de comprar comida para comprar cigarro; aquele que tragava mais de 30 cigarros por dia e, ainda, aquele que deparou-se com o filho de apenas três anos tentando imitar o pai, colocando um cigarro na boquinha. Senti que meu “problema” era o menor diante de tantos outros apresentados em pouco mais de meia hora. O primeiro encontro de uma hora encerrou com a entrega de um panfleto do Ministério da Saúde, com o título “Deixando de fumar sem mistérios”, e com uma missão: no segundo encontro, todos deveriam levar uma data para parar de fumar e o método (parar de fumar completamente ou por redução). Também no primeiro dia, já foi agendada a consulta com a médica, que avaliaria o grau de dependência e a medicação necessária. Resolvi que iria parar de fumar assim que recebesse a medicação. A data escolhida foi 27 de novembro, já que receberia o remédio no dia anterior, 26.

No segundo encontro, surpreendentemente, duas participantes já tinham parado de fumar. Elas haviam consultado no dia anterior à reunião e optado por parar completamente.  Ambas fumavam havia mais de 30 anos. Uma delas, Marisa Ficagna Lazzarotto, 56 anos, mantinha o vício há 40 anos e, no dia da consulta, entregou a carteira de cigarro para a médica. Nunca mais fumaria. Um exemplo para o restante do grupo, que já se sentia motivado. 

Os primeiros dias

No dia seguinte, foi a minha vez de encontrar com a médica psiquiatra Verônica Lazzari, que desde 2011 atua no CAPS. Ela avaliou que meu grau de dependência, de 0 a 10, era 4. Por isso, não era necessário medicação, apenas o adesivo de nicotina que eu deveria usar por, pelo menos, três meses. Confesso que me senti frustrada. Queria um remédio que facilitasse a minha luta. Mas aceitei. Este seria o meu último dia de fumo. Comprei uma carteira inteira e fumei todos em meio dia. O último cigarro traguei lentamente, com lágrimas nos olhos e com um misto de alegria e tristeza. Sob os olhos atentos de meu noivo, Mateus Mezzaroba, dei adeus àquele que me acompanhou por 12 anos. Assim como a todos os acessórios que tinha dentro de minha casa, como isqueiros e cinzeiros. Foi tudo para o lixo. Para sempre!

Na quinta-feira, 27, acordei, coloquei o adesivo e trabalhei normalmente durante toda a manhã. Quando cheguei em casa, ao meio-dia, já sentia-me feliz por não ter fumado os três cigarros que habitualmente tragava no período matinal. À tarde, foi um pouco mais difícil, mas aguentei firme e forte. O problema foi no final do dia e à noite. Encontrei no choro incessante uma fuga para a vontade de fumar. Tentei usar técnicas de ioga, exercícios de respiração e fiquei horas com meus pais conversando pelo Skype. Também recebi muitas massagens do noivo que tentava me acalmar. Estava sendo mais difícil do que eu pensava. Fui dormir cedo, com a esperança de terminar o dia sem correr para uma loja de conveniência comprar cigarro. O segundo dia foi ainda mais difícil que o primeiro. Bebi muita água, comi muita cenoura e pepino (uma dica da médica e da enfermeira para evitar comidas doces e gordura) e tentei, a todo o custo, mudar meu foco para outros pensamentos. Sobrevivi ao segundo dia, ao terceiro e, assim, até hoje.

O fim do cigarro

No terceiro encontro, dos 16 participantes, 13 já haviam parado de fumar. E, ao contrário de mim, todos estavam suportando com certa tranquilidade o curto período sem cigarro. Ivone Soares, de 44 anos, se sentia tão bem nos dois primeiros encontros que nem precisou do medicamento para parar. A consulta com a médica havia sido agendada para a semana seguinte e, antes disso, ela tomou a decisão de parar. Já Silvia Regina, de 46 anos, que há 31 tinha a companhia do cigarro, comemorava o fato de não sentir mais o cheiro que impregnava sua casa, suas roupas e sua pele. Thais Oliveira, de 33 anos, 17 fumando, já tinha até comemorado com sua filha, de 3 anos, uma semana sem o cigarro, com uma janta farta de batata frita. Ela também já estava dando “aula” para seu pai, outro fumante, de como é fácil a luta contra o tabaco. Outro exemplo é de Flademir Dallavecchia, de 54 anos, que fumava há 40 anos. Há um ano, ele abandonou outro vício, o álcool, participando dos grupos de apoio do CAPS. Sua compulsão pela bebida era tão grande que ele chegou a ingerir álcool puro com suco de laranja. Agora, comemora os primeiros dias sem o cigarro. Uma dupla vitória. Já Eloisa Klering, 61 anos, que há 42 anos era fumante, agradecia a Deus por estar apenas dois dias sem fumar e motivada para seguir em frente.

Ainda faltavam quatro participantes pararem de fumar. Um deles era Jurandi Bonet, agricultor que encontrava no cigarro uma companhia na lida diária embaixo das parreiras há quase 30 anos. No último encontro, ele já celebrava que estava há quatro dias afastado do cigarro. Os três filhos e a esposa eram só alegria com a conquista que, até então, julgavam ser impossível comemorar. O último encontro encerrou com duas participantes ainda na promessa de parar. Ambas também sofreram com o vício em drogas, cocaína e crack, e julgavam-se com mais dificuldade de largar o cigarro. Mas o saldo é positivo. Dos 16 participantes, 14 deixaram de fumar. Quem sabe seja cedo para garantir que todos serão capazes de manter-se assim, mas eles afirmam que lutarão até o fim para continuar sem o cigarro. E os primeiros dias provaram que a vida sem ele é muito melhor: conseguimos respirar com tranquilidade, andamos diversas quadras sem ofegar, nossas roupas e pele são cheirosas e o dinheiro agora está sobrando na carteira para as verdadeiras prioridades. Não é fácil, mas é possível e excelente a ideia de viver sem o cigarro.

“Posso dizer que 70%é força de vontade”

Para ganhar o tratamento completo, com psicóloga, médicos e medicamentos, no programa de tabagismo do Ministério da Saúde, desenvolvido pelo CAPS em Bento, é obrigatória a participação em quatro encontros em grupo. De acordo com a médica Verônica Lazzari, mais do que ir às reuniões, consultas e usar os medicamentos, é preciso determinação. “Posso dizer que 70% é força de vontade e 30% é o nosso trabalho”, avalia. O dependente tem que estar seguro de sua decisão e manter-se forte. Nos primeiros encontros, é possível saber quais os sintomas nos dias iniciais sem cigarro, os benefícios, as atitudes a serem tomadas em momentos de abstinência e até o como manter-se sem o fumo depois do encerramento dos grupos. “Posso garantir que 90% das pessoas que participaram do programa pararam de fumar”, afirma Verônica.

O paciente tem consultas mensais durante, no mínimo, três meses, mas o tratamento pode durar por muito mais tempo. “Tem pacientes que eu acompanho há dois anos. São pessoas que tiveram mais dificuldade, desenvolveram algum tipo de quadro depressivo ou de ansiedade, e que são acompanhados por nós”, explica. O ideal é que todos façam o tratamento corretamente, mesmo que se sintam seguros quando largam o tabagismo. Os grupos no Caps ocorrem duas vezes por semana, às terças e quartas-feiras, às 14h e às 18h, respectivamente. Além disso, as Unidades Básicas de Saúde (UBSs) do município também podem promover encontros nos bairros, caso haja, pelo menos, 15 interessados. O telefone do CAPS é (54) 3052 0114.

Reportagem: Raquel Konrad

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