A educação como ferramenta de transformação
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Certa vez, em uma aula do Movimento Brasileiro de Alfabetização (Mobral), um senhor de 70 anos, que era analfabeto e tinha acabado de “aprender a lidar com as letras”, olhou para a professora e disse: “agora ninguém vai me passar para trás. Agora eu sei ler”. O relato, que poderia ser de um livro ou de um conto, é na verdade uma história real, que a professora Eliana Passarin, hoje com 54 anos, ouviu de seu aluno sênior. Ela tinha apenas 15 anos e já havia transformado uma vida. Hoje, após mais de 6 mil alunos frequentarem suas aulas, o número de vidas modificadas pela educação é muito maior.
Natural de Bento Gonçalves e, atualmente, professora de geografia da Escola Alfredo Aveline, Eliana se destaca pelos projetos inovadores e inclusivos, que renderam até prêmios nacionais e internacionais. Ela, que já lecionou em diferentes escolas e projetos – como para o Movimento Sem Terra e Ensino de Jovens e Adultos (EJA) –, coleciona histórias de vitórias e superação. Além da lembrança do senhor, que após a alfabetização ficou feliz que conseguiria conferir seu contracheque, Eliana também relembra momentos especiais com seus alunos mais jovens. “Em 1995, quando ainda não existia laudo de inclusão, um aluno de 15 anos, que sequer respondia ‘presente’ na chamada, acabou se envolvendo em um projeto que fizemos com colegas sobre a Copa do Mundo. Em uma apresentação, ele dançou e cantou com os colegas no salão lotado da comunidade do Borgo, e os pais, emocionados, nem acreditavam que o filho tinha se soltado e conseguido fazer tudo que fez no palco”, comenta.
A Alfredo Aveline, instituição que sempre incentivou os projetos de Eliana, foi a primeira escola do município a contar com internet, em 1996, e, na época, foi possível integrar os alunos com pessoas de outros lugares do mundo. Também foi a primeira escola a lançar jornal próprio impresso. “Eu coordenava o projeto e o jornal, com notícias da escola e da comunidade, era distribuído no bairro. Os alunos amavam produzir o conteúdo”, comenta.
Tantos projetos especiais e transformadores na vida das crianças também lhe renderam muitos convites para ser paraninfa nas formaturas. “É um momento lindo, carregamos os afilhados para toda vida e isso é emocionante”, comenta. Por outro lado, a ligação e os vínculos com os alunos também proporcionam momentos difíceis. “Perder alunos tão jovens e cheios de vida também marcou a minha vida profundamente, porque eles são, um pouco, nossos filhos. É muito triste ver alguns nomes morrerem por conta das drogas, pela violência e até mesmo por doenças, como ocorreu recentemente com a Duda, uma das mais brilhantes alunas que tive, vítima de câncer”, lamenta.
A professora também já contribuiu na vida de imigrantes, como haitianos. “A integração e a vivência de suas experiências tão fortes e dramáticas, despertam nos colegas fortes sentimentos de empatia e humanidade. Ver alunos, por exemplo, de periferia se tornarem escritores, lançando livros, recebendo prêmios nacionais e internacionais e dedicarem parte desta conquista ao incentivo e apoio que a gente pode dar é gratificante demais”, comenta.
Outros projetos encabeçados pela professora beneficiariam a comunidade, como o “Me conta que eu escrevo”, que rendeu um livro, em 2018, com as histórias de idosos do Lar do Ancião. A verba arrecada no livro foi destinada para a instituição. Outro projeto, que inclusive rendeu ao Aveline mais um prêmio nacional, foi o “Ler o Mundo Viver a Vida”, no qual a turma produziu um documentário. “Os alunos contaram o dia que mais marcou sua vida e chorei demais durante a gravação. Isso me fez amá-los ainda mais”, confessa. “Foram tantos projetos coletivos globais da escola que marcaram minha vida! Acredito na troca que se complementa. Ver os alunos envolvidos em projetos, como o ‘Grande Espetáculo’ sempre é mágico. Com eles inclusive a escola chegou em artistas de renome nacional, como Elza Soares, os filhos de Elis Regina e Vinicius de Moraes”, conta.
Para Eliana, a pandemia trouxe um cenário ainda mais desafiador para a educação e que precisa ser compreendido de maneira aprofundada, a fim de gerar novos conhecimentos e mapear possibilidades de ações para o presente e para o futuro. “Fomos pegos por um tsunami, sem manual de instrução, tivemos que nos reinventar sem formação prévia, sem acesso a tecnologias, sem acesso à internet. As desigualdades se evidenciaram ainda mais, uns em barquinhos outros em transatlântico. O prejuízo é pedagógico, social e psicológico. Depois desta pandemia é necessário que políticas de Estado sejam efetivadas, ampliando formação de professores, sistemas mais interativos, diminuindo a distância transacional, precisamos estar preparados e estender a ‘mão’ para quem mais precisa neste processo”, pontua.
Se depender do entusiasmo da professora, talvez as dificuldades de vidas de muitas pessoas que vivem em Bento sejam menos dolorosas de serem superadas. Afinal, o professor e a educação transformam vidas.