A mãe das meninas sapecas

Aos 56 anos, Jaqueline Teresinha Dal Mass perdeu as contas de quantas crianças já passaram por suas mãos – embora não arrisque palpitar um número, estima que sejam, em média, 70 alunas por ano, sendo cerca de metade delas novatas. A Menina Sapeca, escola de ginástica artística que ela fundou em 1988, completou 30 anos e confunde-se com a sua própria história de vida. “Não me vejo fazendo outra coisa. Acho que fiz a escolha certa”, avalia, dizendo que o maior incentivo é ver nas meninas a vontade de aprender e receber o carinho delas de volta.

De uma época em que ser professora era quase que obrigação – havia menos opções de carreira – Jaque, como é conhecida pelas alunas, pegou gosto pela arte de ensinar com a mãe, que ministrava cursos de tricô e crochê. Ela conta que pensava em ser professora, mas não queria o ambiente de sala de aula. Viu na Educação Física uma oportunidade, embora nunca tenha sido das melhores no esporte – era do time das mais baixinhas, sempre escolhida por último na montagem das equipes na escola. “Surgiu a vontade de ensinar os outros a não ficarem para trás. Tive vários desafios que me marcaram, como de meninas fora do padrão por serem muito grandes, mais gordinhas ou altas. Para fazer com que elas vençam, sempre digo que a mente é que vai ajudar”, explica.

Ela tem consciência da responsabilidade que é ensinar uma menina a fazer uma cambalhota ou subir em uma trave. Acima de tudo, é uma relação de confiança. Com frequência, os pais lhe mandam vídeos e fotos das filhas treinando algum movimento durante as férias. Ela também lembra de alunas que contavam praticar exercícios em galhos de árvore ou muros. “Não importava onde estivessem, elas viviam a ginástica” conta. Ela ainda guarda com carinho em um álbum fotografias e recortes de reportagens antigas e procura manter contato com as ex-alunas – algumas inclusive matriculam as filhas na escolinha. “Claro que cada um segue a sua vida, mas a tecnologia ajuda. Encontrei muitas alunas através das redes sociais. Mesmo aquelas que não seguiram no esporte lembram da ginástica como a melhor fase da vida delas, de descoberta, de viagem, de aprendizado. É o que fica”, comemora. 

O foco principal são meninas a partir dos quatro anos e meio, mas também são aceitos meninos com foco no desenvolvimento da coordenação motora
 

Como tudo começou

Formada em Educação Física pela UCS, em 1986, Jaque trabalhava como professora no Colégio Marista Aparecida quando surgiu o desejo de montar uma escola de ginástica – uma de suas frustrações na vida é não ter sido ginasta. Ela conheceu e se encantou pela modalidade em cursos de aperfeiçoamento durante a graduação e já procurava ensaiar algumas coreografias durante as aulas regulares. Com a necessidade de trabalhar os movimentos pré-acrobáticos, a ginástica rítmica – sua intenção inicial – perdeu espaço para a artística, que conquistou as alunas. O nome Menina Sapeca, segundo ela, foi homenagem a uma delas, que fazia jus ao adjetivo.  

A modalidade ainda era novidade em Bento Gonçalves e Jaque buscou apoio em clubes de outras cidades, como o Recreio da Juventude e o Cruzeiro, em Caxias do Sul, e a Sogipa, em Porto Alegre. No começo, a estrutura era limitada: com ajuda dos pais, comprou uma trave e uma barra de ferro afixada à parede era usada como paralela assimétrica. Ela lembra, inclusive, que levava as meninas em ônibus de linha para a disputa das primeiras competições em Caxias. Metade do material que ainda hoje é usado vem daquela época, comprado com dinheiro arrecadado em eventos como bingos. 

Depois de quase 10 anos no Aparecida, a escola transferiu-se para o Sesi e, em 1998, iniciaram as atividades no Colégio Sagrado Coração de Jesus, onde permanece até hoje, recebendo também estudantes de outras escolas. “Mantive a ginástica em uma época que não tinha outra opção para trabalhar. Os primeiros três ou quatro anos, durante a transição da educação física para a ginástica, foram as mais difíceis”, pontua.

A escola já chegou a ter aulas de trampolim acrobático, mas hoje se limita à ginástica artística. Jaque ministra as aulas sozinha, eventualmente contando com ajuda de alguma atleta mais experiente para ensinar os movimentos às mais novas – a participação inicia com quatro anos e meio e encerra normalmente ao final do Ensino Médio, quando os compromissos com a faculdade começam a limitar os horários para treino. “Enquanto eu conseguir segurar as meninas, eu vou continuar. Quem sabe uma delas venha assumir meu lugar. É algo que não gostaria de ver morrer”, projeta.

Embora o foco sejam meninas, a escola também trabalha com meninos na categoria infantil com o objetivo de desenvolver a coordenação motora. Os que pegam gosto pela prática e desejam seguir treinando são encaminhados para a Academia Conexão Esportiva, em Caxias do Sul, onde há equipamentos específicos para o naipe masculino – que diferem do feminino. Além da escola, a professora já trabalhou em outros projetos no município e atualmente também dá aulas em Garibaldi. O fato de a Menina Sapeca já não ser mais a única a oferecer a modalidade em Bento mostra que seu trabalho deu resultado. “Isso me deixa feliz, sinal que semeei alguma coisa e tomara que dê mais frutos”, comenta.
 
Caiu? Levanta! 

Ao contrário de esportes praticados em equipe, em que o espírito coletivo prevalece, a ginástica artística mexe com outras habilidades, especialmente com a superação pessoal. É um desafio diário que inclui aprender a controlar o nervosismo antes de subir na trave ou iniciar uma coreografia no solo. E se tropeçar, cair ou errar o movimento durante a execução de uma série, é preciso encontrar coragem para continuar e terminar a prova mesmo assim. “É como na vida: se caiu, levanta e vai embora. Deixa para chorar depois”, ensina.  

A maior preocupação de Jaque é formar crianças. As aulas ensinam valores como respeito às colegas e à professora e o desejo de evoluir, de se desafiar a cada dia. “Todas as meninas que passaram pela ginástica vão ter sucesso de alguma maneira, não necessariamente profissional, mas vão estar com o emocional equilibrado para fazer boas escolhas, que é o que mais conta na vida. Essa é a arte de educar, o que eles vão fazer com isso no futuro é o que de bom ficou”, conclui. 

As recordações das diferentes fases da escola de ginástica estão registradas em álbuns

Daiane dos Santos

A modalidade se popularizou no final da década de 1990 e início dos anos 2000, quando o Brasil começou a se destacar nas competições internacionais, em especial pela figura da atleta Daiane dos Santos. “Alavancou a ginástica como um todo”, estima Jaque. O fato de ser uma gaúcha a subir no lugar mais alto do pódio serviu de incentivo extra para as meninas – que inclusive a encontraram em competições realizadas na capital. 

As aulas não têm o foco no alto rendimento, embora as com mais desenvoltura e facilidade sejam convidadas para compor a equipe que participará com assiduidade de campeonatos – hoje são seis atletas. Para motivar as demais, ela realiza duas competições anuais na cidade, como forma também de mostrar aos pais o resultado do progresso de suas filhas. 
O importante não é o resultado, é o esforço feito para estar ali. “Não tem o objetivo de ser atleta, porque a gente sabe que é outra realidade, tem que se mudar para uma capital, entrar em outro ritmo de vida junto com os pais. Quando a Daiane dos Santos ia treinar, a mãe pegava três ônibus para levá-la”, exemplifica. 

É claro que ao longo dos anos a Menina Sapeca já conquistou medalhas de primeiro, segundo ou terceiro lugar, o que ajuda a impulsionar todo o grupo. As pequenas enxergam nas atletas que participam das provas ídolos a serem seguidos – a ponto de pedir autógrafo em treinos com horários compartilhados. “Em matéria de exercício é o mínimo, mas para aquelas meninas elas estão se espelhando em quem está voando na paralela”, conta. 

Esta é a 69ª reportagem da Série “Vida de…”, uma das ações de comemoração aos 10 anos do SERRANOSSA e que tem como objetivo contar histórias de pessoas comuns, mostrando suas alegrias, dificuldades, desafios e superações e, através de seus relatos, incentivar o respeito.