“A tatuagem representa a liberdade sobre minhas escolhas pessoais”

Nos últimos dias, uma coluna publicada em um jornal da cidade gerou uma onda de manifestações na internet. No texto, o colunista caracteriza de forma pejorativa e da voz ao preconceito que ainda existe na sociedade em relação a pessoas tatuadas e/ou com piercing. Além da repercussão negativa, a coluna trouxe à tona a necessidade de discussões sobre o assunto. 

A professional piercer Deise Bianchi atua na área há dez anos e tem seu corpo coberto por tatuagens repletas de significados pessoais. Por meio delas e dos piercings, Deise já participou de diversos concursos de miss, representando Bento Gonçalves, conquistando títulos como Miss Pin Up Style Contest, Miss Girl Tattoo, Miss Diosa Tattoo, Bela Tatuada e Miss Pin Up. “Ainda, estou inteiramente ligada aos movimentos que enriquecem a cena da tatuagem e piercing, onde tenho privilégio de participar como jurada em concursos de categoria de Piercing”, conta. Além de uma forma de arte e sustento para sua família, Deise afirma que as tatuagens representam sua essência, estilo “e a liberdade sobre minhas escolhas pessoais”, complementa. 


Professional piercer Deise Bianchi

O mesmo sentimento é compartilhado pelo tatuador Otávio Moreira, que relata receber mensagens frequentes de clientes agradecendo pelo trabalho feito em suas peles. “O significado da tatuagem vem muito do que a pessoa está vivendo no momento atual de sua vida. Elas marcam ciclos importantes, são uma forma de homenagem”, destaca. Em relação àqueles que ainda veem a arte com preconceito, ele opina: “são pessoas com a cabeça fechada, sem ampliar horizontes e conhecimentos. Até porque, a maioria das pessoas que eu conheço tem alguma tatuagem. Tenho vários clientes bem-sucedidos que têm diversas tatuagens”. 


Tatuador Otávio Moreira 

É o caso da médica-legista e patologista Liane Faccio. No total, a profissional tem 20 tatuagens, a mais recente feita há cerca de 15 dias. “Tatuagem é uma maneira de expressar a nossa personalidade. Mesmo que as preferências mudem ao longo dos anos, não existe arrependimento. São sentimentos, momentos e amores que fizeram parte da nossa história”, pontua. A médica ainda cita a importância dos traços para a medicina, que se diferem do estético, “como no caso de pacientes que tatuam o nome de doenças crônicas, alergias a medicamentos ou tipo sanguíneo”, ressalta. 

Apesar da relevância da arte até mesmo para fins de saúde, Liane comenta que ainda há resistência no mercado em relação às tatuagens. “Existem áreas de atuação mais conservadoras e isso deve ser levado em conta na escolha do desenho e local a ser tatuado”, comenta. 


Médica-legista e patologista Liane Faccio

Restrições a símbolos de violência ou discriminação

Algumas dessas restrições são observadas na área da segurança pública. O policial civil Guilherme – que prefere não ser identificado – conta que precisou pensar bem no local e no desenho antes de fazer sua primeira tatuagem no início deste ano. “Sempre tive vontade de fazer tatuagem, mas me preocupava com o pensamento dos outros em relação à minha atividade. Quem trabalha na segurança pública sabe que alguns símbolos são utilizados pelos criminosos como forma de identificar a organização em que ele pertence, além demonstrar qual o tipo de crime que ele comete, seja tráfico, roubo ou algum outro”, explica. 

O policial revela que a ideia inicial era desenhar o símbolo do seu signo, mas o mesmo traço era utilizado por uma das principais organizações criminosas que atua em Bento. “Mesmo tendo total ciência que o objetivo da tatuagem era o oposto da utilizada por eles, optei por não fazer e resolvi fazer a segunda opção, que foi um lobo”, relata. 


Policial Guilherme, que tem um lobo tatuado, afirma:  “Para mim a tatuagem é uma forma de demonstrar o próprio perfil. Optei pelo lobo porque são animais que vivem em matilha (sociedade)”

Por conta disso, algumas corporações, como a Brigada Militar, liberaram a tatuagem para policiais há pouco tempo. “Existia realmente um impedimento em relação às tatuagens porque os militares têm de possuir um padrão, como corte de cabelo específico, não usar barba, etc”, explica o comandante do 3º Batalhão de Policiamento em Áreas Turísticas (3º BPAT), tenente-coronel Luis Fernando Becker. Hoje, o comandante afirma que não há mais restrições, justamente pelo entendimento de que a tatuagem é uma “expressão de arte no corpo”. “Muitas pessoas expressam sentimentos, nomes de pessoas queridas, o time para que torce…”, comenta. Mesmo assim, os policiais militares ainda recebem orientações contrárias a tatuagens que representem ideologias criminosas, preguem a violência ou a discriminação e que, no geral, atinjam a ética. 

“Para mim a tatuagem é uma forma de demonstrar o próprio perfil. Optei pelo lobo porque são animais que vivem em matilha (sociedade). Observando o modo de agir de uma matilha, se percebe que todos se cuidam e se protegem como uma família, e isso se reflete muito bem na nossa profissão. Na polícia somos um só, uma única unidade, e prezo muito por esses valores”, declara o policial Guilherme. 
 

Restrições no mercado de trabalho

Trabalhando em uma empresa de redutores em Bento e pertencente a um grupo de rap de Bento, o jovem Cristian Fernando Policarpio Flaiban, de 19 anos, conta que já enfrentou dificuldades para conseguir uma vaga no mercado de trabalho por conta de suas tatuagens. “Algumas pessoas ainda devem pensar que, por ter tatuagens, eu não quero nada com a vida”, lamenta. 


Cristian Flaiban, de 19 anos, conta que já enfrentou dificuldades para conseguir uma vaga no mercado de trabalho por conta de suas tatuagens

Apesar das situações de preconceito, o jovem ressalta o poder da arte para a geração de renda e para a autoestima de pessoas que podem cobrir cicatrizes que marcaram momentos difíceis em sua vida. “Sempre vai rolar preconceito, porque a gente vive numa sociedade onde julgam as tuas roupas, o teu cabelo e até as músicas que tu escuta. Essa cultura preconceituosa só persiste porque as pessoas ainda são muito mente fechada, e talvez achem que uma pessoa com tatuagem e piercing não tenha capacidade para fazer algumas coisas”, acredita. 


“As tatuagens representam minha liberdade e, sem dúvida, falam muito sobre mim. Sobre ser eu mesma, sem me encaixar em um padrão, e também mostra um pouco do que eu faço”, afirma a fotógrafa Ramoniele

Mesmo trabalhando com arte, a fotógrafa Ramoniele Janaira Alves da Silva também relata que já sofreu preconceito por parte da sociedade. “Escuto frases como ‘nossa, para que tanta tatuagem?’, ou mas por que você foi fazer isso?’. Fora alguns olhares que as pessoas nem disfarçam”, diz.  Por conta disso, ela revela que sempre buscou emprego em locais onde sabia que já trabalhavam pessoas tatuadas ou com piercings, “para não ter que passar por certas situações”. Atualmente, além de fotografar, Ramoniele trabalha com dança, com criação de sites para eventos de Hip Hop e como vendedora na loja Nest Panos, no Shopping Bento. “As tatuagens representam minha liberdade e, sem dúvida, falam muito sobre mim. Sobre ser eu mesma, sem me encaixar em um padrão, e também mostra um pouco do que eu faço”, comenta. 

A professora do curso de Direito da UCS Melissa Demari tem tatuagens e piercings há cerca de 20 anos. Também atuando como advogada, ela revela que, no meio jurídico em geral, as tatuagens e piercings ainda são vistos como uma questão de maior relevância. “Para algumas profissões, a sociedade e o mercado são muito mais tolerantes. Mas não há como negar que isso ainda pode ser um estigma”, avalia. Quando questionada pelos alunos sobre fazer, ou não, tatuagens, a professora não esconde o peso da escolha: “Afinal, assim é a vida e assim são as pessoas. Não significa que elas não possam mudar, ou mesmo aprender que tatuagens e piercings não carregam nenhum valor ou símbolo negativo, mas o fato é que essa estética não passa despercebida numa profissão que a sociedade associa a uma imagem mais ortodoxa, como são as carreiras jurídicas”, comenta. 


“Seja quem tu é e quem tu quer ser e pague o preço, ou se encolha, se enquadre, se adapte, e viva tranquilamente do jeito que pensaram pra ti”, reflete a professora do curso de Direito da UCS, Melissa Demari

“As tatuagens, a roupa, o comportamento, tudo para a sociedade importa (não deveria, mas importa!), e tudo pode pesar negativamente na tua vida”, ressalta. Para Melissa, as tatuagens e piercings expressam a sua individualidade. Por conta disso, a professora sugere a reflexão: “Faça uma escolha: seja quem tu é e quem tu quer ser e pague o preço, ou se encolha, se enquadre, se adapte, e viva tranquilamente do jeito que pensaram pra ti”. 
 

Como acabar com o preconceito?

A professional piercer Deise Bianchi opina que todo o ser humano deve ser livre para fazer ou ser o que quiser, “desde que isso não interfira ou venha a ferir a integridade do próximo”. Para ela, o preconceito em relação à estética de pessoas tatuadas e/ou com piercing ainda existe de forma evidente e ressalta que ninguém precisa gostar ou aprovar o estilo. “Mas cada um expressa o que guarda dentro de si. Alguns com doçura, outros com venenos”, analisa. “Respeitar o que não lhe diz respeito é o suficiente, afinal, o preconceito faz transparecer o caráter de quem julga, não de quem é julgado”, analisa.


 

O tatuador Otávio Moreira complementa a ideia, sugerindo que a solução para o preconceito seja o tratamento igualitário entre todos. “As pessoas precisam parar de se tratar pelo sobrenome, pela cor, religião, nacionalidade, preferência sexual… têm que se respeitar pelo que elas são”, diz. “Uma vez fiz uma brincadeira com um conhecido: se tu fosse cego e estivesse conversando comigo hoje, o que tu sentiria? Eu sou uma pessoa ruim por ter tatuagem? Enfim, o que irá resolver tudo isso é todo mundo se tratar por igual, sem preconceito e todos por uma vida melhor”, finaliza. 
 

Fotos: arquivo pessoal