Adoção: “É como se eles sempre tivessem sido seus e agora você está os reencontrando”

De acordo com dados do Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento (SNA) do Conselho Nacional de Justiça, o Brasil tem atualmente mais de 5 mil crianças aptas para serem adotadas. Muitas dessas crianças carregam momentos de dor, saudade e angústia, com vivências ligadas à violência e à negligência.  Em agosto deste ano, os irmãos Luan e Yuri ganharam uma chance de deixar todos os momentos ruins no passado. Eles foram adotados pelo casal de Bento Gonçalves Daniel Sartori e Giane Vilarino e sua filha Fernanda Sartori, que viajaram até o Rio de Janeiro para encontrá-los. “Nós sempre convivemos com exemplos de adoções na família e quando nos sentimos prontos para ter um novo filho, decidimos que seria diferente dessa vez. Decidimos que iríamos adotar”, relata Giane. 


Foto: arquivo pessoal
 

O casal entrou no Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento (SNA) em 2017 e, ao longo do processo de espera, participou de grupos de apoio de adoção. “Quando entramos no cadastro algo que nos chocou muito foi que precisávamos traçar o perfil da criança que queríamos. Não colocamos nenhuma restrição, nem de raça, nem de sexo, apenas estipulamos uma criança até 7 anos. E participando dos grupos, passamos a entender a realidade das crianças que estão nos abrigos hoje. São crianças mais velhas, grupos de irmãos, e se a gente continuasse com o perfil de apenas uma criança, eu poderia ficar até 10 anos esperando”, comenta. 

Dessa forma, a família abriu o coração para receber mais de uma criança e foram presenteados com os irmãos Luan, de 7 anos, e Yuri, de 4 anos. Eles estavam abrigados havia cerca de um ano e meio na cidade de Campos dos Goytacazes, no Rio de Janeiro. Em julho, foi iniciado o processo de aproximação por meio de vídeochamadas e, no dia 12/08, a família foi até a Casa Lar para buscá-los. “Eles ainda estão em processo de adaptação, mas percebemos que estão muito felizes. A cada dia eles abrem um pouco mais o coraçãozinho deles para a gente. E a nossa vida mudou para a melhor. Já éramos uma família feliz, mas eles vieram para acrescentar”, declara Giane.


Foto: arquivo pessoal
 

Para a mamãe de três, a única dificuldade da adoção são as lembranças e traumas que as crianças carregam do seu passado. “A gente percebe que o Luan tem lembranças muito mais vivas e por isso mais traumas. Mas ele é um menino forte e guerreiro e vai passar. Temos que entender que eles tinham uma vida antes e que não podemos passar uma borracha em cima disso”, aconselha. 
Segundo Giane, os pequenos já estão os chamando de “pai, mãe e irmã” e se mostram cada vez mais adaptados ao novo lar. “Para nós, a adoção significa um ato de amor e carinho. Nós já estávamos tocados por eles somente por fotos e vídeos, mas quando os vimos pessoalmente, é difícil descrever. É um amor que toma conta, como se eles sempre tivessem sido teus e você tivesse os perdido em algum momento, mas agora está os reencontrando”, finaliza. 

“É preciso estar preparado psicologicamente para amar incondicionalmente”

Em 2010, a vida da consultora de Turismo Ivane Fávero e de sua filha Lúcia Fávero Moraes tomou um rumo inesperado. A chegada de Crislei – hoje Crislei Sabrina Fávero – proporcionou novas vivências e aprendizados valiosos à família. “No início de 2010 eu estava separada do meu primeiro marido e a minha filha [então com 10 anos] queria muito uma irmã. Então eu li uma matéria em um jornal que falava sobre o processo de apadrinhamento da Casa Lar Padre Oscar Bertholdo, de Farroupilha”, conta Ivane. “Resolvi ir com a Lúcia até lá e logo vimos uma menina de nove anos que nos chamou a atenção. Ela estava penteando o cabelo de uma criança menor”, recorda. 

Crislei estava na Casa Lar com sua irmã biológica mais nova, já sem esperanças de encontrar uma família. Ivane, então, decidiu apadrinhar a menina, que passou a frequentar sua casa todos os finais de semana. “Levávamos ela para viver experiências que ela nunca tinha vivido. Passear, ir para a praia, comer comidas diferentes… e ela foi se encantando e nosso carinho foi aumentando. Mas eu não estava na fila de adoção, apenas tinha o desejo de apadrinhar”, relembra. Crislei e sua irmã já tinham famílias interessadas e foram adotadas algum tempo depois. “Mas acabaram devolvendo ela, o que infelizmente acontece em processos de adoção. Então, a Casa Lar me ligou informando que ela havia sido devolvida e que, quando perguntaram se ela queria ser adotada por alguém, ela disse que queria ser adotada por mim e pela minha filha. Falei que iria pensar e já no dia seguinte já respondi que sim” conta Ivane. 


Cris e Ivane. Foto: Everson Tavares
 

A consultora de Turismo Ivane Fávero deu início a todo processo de adoção, que foi concluído em agosto daquele ano. Apesar da convivência entre as três já ter iniciado há algum tempo, Ivane recorda que o primeiro ano foi marcado por momentos desafiadores. “Estávamos falando da adaptação de duas crianças com duas vivências totalmente distintas. Uma com 9 e a outra com 10. De um lado uma menina que tinha passado por experiências muito dolorosas, que era uma sobrevivente. E de outro uma que tinha tido todo o carinho e cuidado. Então elas tiveram que buscar o equilíbrio entre elas”, relata. 

Para garantir um convívio harmônico e prazeroso, Ivane conta que estudou muito e buscou ajuda com diferentes profissionais. “Por um tempo ela chegou a ir a psiquiatra e psicólogo, mas então percebi que precisava trabalhar isso em casa também”, comenta. A partir do ensinamento de um profissional que trabalha com dependentes químicos na Itália, a consultora entendeu que amar incondicionalmente é o segredo para fazer dar certo. “Ele me disse que todo ser que passa por uma grande dor na vida vai tentar provar que não é digno do seu amor e vai fazer provocações para comprovar sua teoria. É nessa hora que você precisa mostrar com muita firmeza o teu amor incondicional, que, apesar de tudo, a pessoa vai poder contar contigo. E foi de fato o que nos ajudou a construir essa família. É preciso estar preparado psicologicamente para amar incondicionalmente”, declara. 


Rômulo, Cris, Ivane e Lúcia. Foto: Igor Guedes
 

Hoje, além de Lúcia e Cris, a família de Ivane, que reside em Garibaldi, também é preenchida pelo companheiro Rômulo de Freitas e seus filhos. Crislei tem 19 anos, cursa Direito na Universidade de Caxias do Sul (UCS) e atua em um escritório de advocacia de Bento Gonçalves. Além de ter se tornado uma filha dedicada e amorosa, ela criou um vínculo muito forte com a irmã adotiva. “A relação das duas é muito fraternal e madura. É de duas irmãs que se dão muito bem. E o bonito é que mantivemos a relação com a irmã biológica dela que foi adotada por outra família”, revela Ivane. 


Foto: Igor Guedes
 

Na opinião da consultora, o processo de adoção mudou não apenas a vida de Crislei, mas também contribuiu para que ela e sua filha Lúcia pudessem se tornar pessoas melhores. “Foi um processo doloroso em alguns momentos, mas também muito prazeroso. Houve uma grande troca. É gratificante poder auxiliar uma criança a ter a vida e o amor que ela merece”, analisa. “Não existe isso de sangue do meu sangue. Filho é de coração, de alma. No início, algumas pessoas me perguntavam quem era a minha filha verdadeira. Como assim? As duas são. Mas hoje as pessoas aprenderam a entender e respeitar. E que a gente possa estimular outros homens, outras mulheres, outros casais a adotarem também”, deseja Ivane. 

Mais de cinquenta famílias aguardam na fila de espera da adoção em Bento

A adoção de crianças e adolescentes no Brasil ainda é um processo demorado e repleto de exigências, tanto por parte da Justiça quanto das próprias famílias. De acordo com Gabriela Salvini, assessora do juiz substituto do Juizado da Infância e Juventude de Bento Gonçalves, Dr. Vancarlo André Anacleto, o processo é burocrático para se garantir que o menor esteja indo para um lar que realmente terá condições de acolhê-lo. “E a demora também se dá pela preferência dos casais, que normalmente preferem crianças de até cinco ou seis anos de idade e brancas”, revela. 

Atualmente, 53 famílias estão com cadastro ativo na lista de espera em Bento Gonçalves e quatro crianças/adolescentes aguardam uma chance – eles têm 10, 14, 16 e 17 anos. Desses, duas meninas, de 10 e 14 anos, já estão em estágio de convivência com as famílias. “Se for positivo o período, o próximo passo já é a adoção”, comenta Gabriela. Em relação aos outros dois meninos, um está no Abrigo Municipal de Bento e, outro, em um abrigo em Rio Grande (RS).

Neste ano, apenas uma adoção foi consolidada no município, de uma criança recém-nascida. “A gente percebeu que a procura por pretendentes e por habilitações diminuiu. Mas muito por conta da questão da COVID”, analisa a assessora. 

Como funciona o processo de adoção?

No Brasil, podem adotar pessoas a partir dos 18 anos, com base em alguns critérios, principalmente sociais e psicológicos. Para começar, a pessoa deve encaminhar um e-mail ao cartório do Juizado da Infância e da Juventude, ou comparecer ao Fórum do município em que reside, sinalizando a intenção de se candidatar à adoção. O possível candidato receberá um formulário para preenchimento e precisará anexar os documentos solicitados para entrega no cartório. Com isso, o Ministério Público abrirá um processo judicial. “O Juiz determinará que seja realizada uma perícia social e psicológica desse casal ou pessoa, quando serão coletados os dados para decidir se o candidato é apto ou não para a adoção. Os psicólogos e assistentes sociais, então, emitem seus pareceres, que influenciam muito no processo. É tudo feito no Fórum, sem custo nenhum”, explica Gabriela. Na sequência, o MP emitirá um parecer. Se for positivo, o juiz irá deferir a habilitação do candidato por meio de sentença e o incluirá no Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento (SNA), onde permanecerá na lista de espera. 

O tempo de espera dependerá das características solicitadas pelos candidatos. De acordo com Gabriela, crianças mais novas normalmente demoram mais. 

É necessário ter diferença de 16 anos entre o adotante e o adotado e as famílias podem optar por critérios como o Estado onde a criança ou o adolescente reside; a idade mínima e máxima; quantidade de crianças; gênero; etnias; se aceita irmãos e se aceita crianças com alguma deficiência ou doença. 

“Quando tem uma criança disponível para a família, então inicia o estágio de convivência com o casal ou a pessoa. Mas antes disso, as equipes de assistentes sociais, psicólogos e do abrigo municipal visitam a residência dos candidatos, a fim de manter um acompanhamento mais de perto da rotina deles. A criança passa alguns finais de semana na residência para visitação”, comenta Gabriela.  O período de convivência tem prazo máximo de 90 dias. 

Muitas das crianças que estão para adoção passaram por traumas decorrentes do abandono, da negligência e/ou da vulnerabilidade social. Dessa forma, elas antes são amparadas por uma rede de psicólogos e psiquiatras que trabalham a questão emocional. “Também é respeitada a vontade do adolescente. Muitos não querem ser adotados, é o caso de um dos meninos aqui de Bento. Ele tem um irmão biológico e não quer ser separado. Depois dos 12 anos, é necessário ter o consentimento do adolescente”, afirma a assessora. 

Outra questão que pode influenciar no processo de adoção é a destituição familiar, quando há resistência por parte dos pais biológicos. Quando uma criança precisa de ajuda em uma família, ela é primeiramente amparada e, na sequência, é averiguado se os pais têm condições de exercer o poder familiar ou se há algum familiar que queira ficar com a guarda da criança. “A gente tenta sempre manter o menor no seio familiar. A destituição do poder familiar é a última medida adotada. Mas têm muitos pais que não aceitam, então há diversas crianças abrigadas por questão de negligência, mas ainda não podem ser adotadas porque o processo de destituição não foi concluído”, explica Gabriela.