Alcoólicos Anônimos: admitir o problema, aceitar a derrota e pedir ajuda

No mês em que uma das principais pautas é a prevenção ao suicídio, por meio do Setembro Amarelo, se exalta a importância de grupos que visam oferecer apoio emocional a seus membros. Pesquisas evidenciam que o álcool funciona como um depressor do sistema nervoso central, exacerbando os sintomas depressivos e aumentando o risco de morte por suicídio. Outras substâncias psicoativas também reduzem a capacidade de decisão racional de uma pessoa, alterando seu estado psicológico e de consciência. E é visando prevenir seus membros dessa e de outras consequências graves do alcoolismo que o Alcoólicos Anônimos (AA) atua mundo afora. Em Bento Gonçalves, as reuniões acontecem semanalmente às segundas-feiras, a partir das 19h30 na Ação Social São Roque; às quintas-feiras, também a partir das 19h30 na escola General Bento Gonçalves da Silva e, aos sábados, a partir das 14h30, no mesmo local. 

As reuniões são voltadas para alcoólicos ou alcoólicos cruzados (também dependentes de outros tipos de drogas) que estão abertos a receber ajuda. “A maior dificuldade para o alcoólatra é aceitar o problema. Então entram os primeiros passos do AA: ‘admitimos que éramos impotentes perante o álcool, que havíamos perdido o domínio da nossa vida. Quando conseguimos admitir o problema, aceitar a derrota e buscar ajuda, a coisa funciona”, explica um membro do AA há cerca de 25 anos, que, recuperado, hoje auxilia à disseminar a mensagem do grupo a todos que estejam precisando. 

O AA em Bento Gonçalves existe há 31 anos e, desde então, já auxiliou centenas de pessoas a se livrarem da dependência alcoólica. A ideia das reuniões é o compartilhamento de experiências e a prática dos “Doze Passos” para a recuperação individual. Nenhuma informação pessoal além do nome é dada durante as reuniões, a fim de preservar o anonimato daquela pessoa. Atualmente, cerca de 20 pessoas de todas as idades, sendo quatro mulheres, frequentam os encontros. 


Foto: Divulgação/AA Bento
 

Levando em consideração que o alcoolismo é uma doença, conforme descrito pela Organização Mundial da Saúde (OMS), o Alcóolicos Anônimos funciona como um suporte ao tratamento médico usual. Assim que a pessoa termina seu período de internação, ela pode recorrer ao AA para dar seguimento ao tratamento. “Quando a pessoa se isola da sociedade para o tratamento, ela deixa muita coisa do lado de fora. Desavenças, dívidas, mal-entendidos com a família. É aí que nós entramos, para auxiliar a pessoa a enfrentar essa barra e não recair”, afirma o membro. “Geralmente, alguns companheiros perdem tudo, até a família. Outros, precisam reconquistar as pessoas queridas”, revela. 

Os desafios da sobriedade

O AA trabalha a partir de 12 passos para recuperação pessoal, 12 tradições para manutenção do grupo e 12 conceitos de serviços que auxiliam no funcionamento da irmandade. Entretanto, cada membro é responsável pela sua própria evolução. “Um juiz federal de Minas Gerais publicou há algum tempo um artigo importante no qual citava que os participantes do AA são seus próprios médicos, enfermeiros e advogados”, recorda o membro. Mas o que muitas pessoas não sabem ou se esquecem, ressalta, é que o alcoolismo é uma doença “atrativa, progressiva, compulsiva, incurável e, muitas vezes, fatal”.

O membro, que preferiu não ser identificado, esteve na primeira reunião do AA em 1996. Sem saber, foi levado até o encontro pela irmã e pela esposa. Ainda em negação sobre a proporção de seu problema, conta que aceitou realizar a internação e frequentar as reuniões para contentar seus familiares. “Estava tudo uma maravilha, até que achei que poderia voltar a beber de novo, mas controlando a dose. Não deu certo e eu recaí”, recorda. Em um dia, entretanto, olhando sua figura no espelho, ele refletiu sobre o futuro que queria para si. “Foi então que aceitei ajuda e passei a levar a sério o tratamento. Não pensando nos outros, mas sim em mim mesmo”, afirma. 

Durante seu processo de dependência e recuperação, ele conta que perdeu amigos e pessoas especiais, como seus pais, que foram vitimados pelo álcool. “Se eu soubesse, na época, que existia a AA, poderia ter feito algo por eles”, lamenta.


Foto: Divulgação/AA
 

Para garantir o foco em sua reabilitação, o membro conta que passou a trabalhar pelo AA, auxiliando os demais companheiros e disseminando a importância do grupo na região. “Focando nisso, eu passei a ter a responsabilidade de não denegrir a imagem da irmandade. Com isso, eu me fortaleço e pratico os princípios do AA, sempre que possível transmitindo minha mensagem para quem precisa”, comenta. 

E a cada novo dia, são outras 24 horas de luta contra o álcool. “É uma doença que não tem cura. A partir do momento que um alcoólatra coloca o primeiro gole na boca, volta toda dependência”, revela. “Por isso a importância da pessoa aceitar o problema e buscar ajuda por ela própria, não por pressão dos que a cercam”, reafirma. 

Lidando com um alcoólatra 

O alcoolismo é uma doença que afeta não apenas a pessoa em situação de dependência, e sim sua família e pessoas de seu convívio. Lidar com um alcoólatra pode ser difícil, desgastante e doloroso. Pensando nisso foi criada a associação Al-Anon, a qual atua a partir de grupos de parentes e amigos de alcoólicos que compartilham sua experiência, força e esperança, a fim de solucionar os problemas em comum. 

Por conta da pandemia, as reuniões dos grupos Al-Anon em Bento seguem suspensas, mas deverão retornar nos próximos meses. O objetivo é prestar apoio a essas pessoas que, indiretamente, também são acometidas pela doença. “Às vezes, a família fica até mais doente do que o próprio doente”, comenta um dos membros. 


Foto: Divulgação/AA
 

Como se sustena o AA?

Entre os princípios do Alcoólicos Anônimos está a autossuficiência. Não são aceitas doações de quaisquer entidades, empresas ou pessoas físicas de fora do grupo, sendo seu sustento garantido apenas pelas pequenas contribuições feitas voluntariamente pelos membros durante as reuniões. O valor auxilia no pagamento do aluguel e demais despesas de manutenção das salas utilizadas para os encontros. 

No AA não há presidentes ou diretores. O próprio grupo elege um coordenador por um determinado período, o qual ficará encarregado de coordenar os encontros. Também há representantes que auxiliam na realização de demais serviços da irmandade e na divulgação do propósito do grupo à comunidade. Esses atuam de forma voluntária, com o único intuito de ajudar cada vez mais pessoas a alcançarem a sobriedade. 
 

Depoimento de um alcoólatra

"Doença encardida, esta do alcoolismo. Doida e doída. Para estacioná-la, não posso esquecê-la. Ao contrário. Devo procurá-la, encontrá-la dentro dos outros, partilhar a dor que causa.

Por isso vou visitar, através do espelho, a mesma angústia de antes da rendição… Sentir de novo, expressa em outro, aquela agonia brutal, aquele entorpecimento, aquele ódio sem direção, aquela vontade de chutar o mundo, de brigar com Deus, de descobrir, em resumo, algum culpado para a dor corrosiva que vai matando o corpo e a alma, a segunda mais depressa que o primeiro…

É que é duro, sim… Quando se está sozinho, isolado, cercado de gente que não entende o tamanho da coisa, fica insuportável.

Aí chega alguém. Pode ser qualquer um o portador do milagre… Jovem, velho, rico, pobre, branco, negro, mestiço, analfabeto, professor, padre, médico, servente de pedreiro, casado ou solteiro, homem ou mulher. Aí acontece. Não é nada visível- talvez uma cicatriz da alma, um brilho nos olhos, sei lá – e de um jeito meio sonso, como o da gente no bar que aparece de mansinho e de repente está ali, do lado, levando uma prosa, falando das coisas.

Extraordinário como, falando de si, qualquer um de nós nos retrata… A mesma prisão, a mesma armadilha, as mesmas asas sem céu para voar. E como é importante, quando rastejamos, ver alguém que já rastejou também e calmamente fala que nós podemos – que é possível! – voltar a ficar de pé.

Mas às vezes, mesmo entre seus pares, a doença já é tão grave que o doente grita…A dependência da mente, a necessidade de se inebriar e trocar o mundo e a possibilidade da vida por um instante de entorpecimento é tão forte que ele berra todo seu medo, optando pela cegueira e pela viseira da negação.

E então, nega. Nega sua doença, nega sua dor, nega sua solidão, nega seu próprio desespero… Nega, enfim, a própria ajuda que sua alma mudamente pede.

E nós, doentes como ele, mas que aproveitamos nossa chance, temos nessa hora de nos colocar no lugar dele. Lembramo-nos de como foi com a gente, de como reagimos nas muitas oportunidades que tivemos, antes daquela em que finalmente, impulsionados pela força gravitacional de nosso fundo de poço, aceitamos a ajuda oferecida.

E é justo isso que o capítulo VII do Livro Azul nos lembra e ensina. Se ele não quiser parar de beber, não perca tempo tentando convencê-lo. Recorde como a doença fez com você, tenha paciência. Não apresse as coisas, pois assim pode fechar definitivamente as portas para salvar um irmão que sofre.

Também não imponha seu Deus, nem sua maneira de vê-lo. Cada um tem a sua, é um direito. Não tente aproximar-se dele através de um membro da família, a não ser que seja a única chance. Você sabe a maneira de nossas cabeças funcionarem: precisamos de ajuda, sim, mas de pessoas que não estejam representando nada nem ninguém que nos pressione. Já estamos pressionados demais.

Fique na sua, fale sozinho com ele, mostre como a coisa aconteceu com você. Seus sintomas, suas experiências. Conforme estiver o humor dele, ataque. Se falar de coisas sérias, cuidado para não moralizar. Se falar de coisas meio anedóticas, aquelas situações ridículas de que tantas vezes fomos protagonistas, abra espaço para que ele, descontraído, conte alguns casos seus também.

Finalmente, quando falar da Irmandade, frise nosso caráter democrático, confidencial, livre e gratuito.

Mostre como um monte de pessoas como você – não diga jamais "como ele" – conseguiu pelo nosso programa segurar a estranha condição mental que se desencadeava após o primeiro gole, simplesmente evitando-o. Fale de como o programa funcionou para você, permitindo que vivesse bem sem beber, eliminando suas angústias, dando forças para enfrentar as situações sem necessidade de recorrer ao mundo mágico do primeiro gole.

Fale de sua mudança, da auto-análise que fez de seus defeitos, de como percebeu que estava mentalmente viciado em jogar nos outros a culpa por fracassos e dificuldades que eram de sua exclusiva responsabilidade. Mostre como, lentamente, conseguiu trocar a agonia permanente que sempre o acompanhava por uma paz intermitente, que vai e volta, ficando cada vez mais tempo com você.

E, principalmente, não terá expectativas. Apenas mostre quem você é, o que permitiu sua recuperação e sua disposição de ajudar a todos que, descobrindo em si o mesmo problema, solicitarem seu auxílio.

Caso consiga trazê-lo para o grupo, acompanhe-o de perto, esclarecendo dúvidas, apoiando nos primeiros momentos de dificuldade, facilitando seu contato com a realidade dos sóbrios e dos abstêmios. Em suma, faça sua parte e deixe o resto com o Poder Superior.

E, é claro, continue sempre levando sua mensagem a outros alcoólicos, sem esperar com isso salvar todas as vidas. Não há nada melhor para assegurar nossa imunidade contra a bebida. Sua vida vai ter realmente, como diz o nosso livro, um novo sentido. Ver pessoas recuperadas, a Irmandade crescer ao nosso redor, pessoas perdidas se salvarem, faz muito, muito bem.

Um bem enorme, que nos torna ainda mais gratos e ligados aos princípios e pessoas que possibilitaram o milagre, em nós, de uma vida de permanente e – cada vez mais à serena sobriedade".

REVISTA VIVÊNCIA N°. 38 – NOVEMBRO / DEZEMBRO DE 1995 p. 39

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