Anestesiologista de Bento desabafa sobre como a descrença na COVID-19 cansa os profissionais de saúde

A médica anestesiologista Pauline Elias Josende, de Bento Gonçalves, publicou um depoimento nas redes sociais falando sobre o desafio diário no combate ao novo Coronavírus. Em dois dias, o texto teve mais de 1,1 mil compartilhamentos e tem circulado também em grupos de WhatsApp.

 


Foto: arquivo pessoal

 

"ALERTA TEXTÃO SOBRE CORONAVÍRUS PORQUE EU NÃO AGUENTO MAIS OS COMENTÁRIOS DAS PESSOAS

Você já olhou alguma notícia sobre qualquer coisa, absolutamente qualquer coisa, a respeito do coronavírus? Sobre alguém ter morrido, sobre casos terem aumentado, sobre leitos, sobre suspeitos, sobre QUALQUER COISA? Você já viu os comentários em qualquer live, em qualquer reportagem, em qualquer coisa? É uma completa ENXURRADA de comentários dizendo que ou isso não existe, ou cadê o teste, ou agora tudo é corona, ou estão mentindo dados, ou eu não acredito nisso, ou sei lá, qualquer outra coisa. Então, depois de anos sem textão, eu decidi falar sobre isso.

Eu sou anestesista e moro em Bento Gonçalves. No hospital onde eu trabalho, eu e a equipe da qual eu faço parte temos feito um dos trabalhos que é considerado com maior potencial de contaminação pelo novo coronavírus, que é a intubação orotraqueal. Apesar de essa ser a minha parte, e é dela que vou falar, esse texto se aplica a todos os outros médicos que estão fazendo esse procedimento em outros lugares e cuidando desses pacientes antes e depois disso, não necessariamente anestesistas ou intensivistas, e a todos os outros profissionais da saúde, todos, que estão atendendo essas pessoas em QUALQUER momento da cadeia de atendimento que existe pra atender alguém que é afetado por essa doença, do momento do diagnóstico até o feliz momento da alta. 

Sobre a intubação orotraqueal: é colocar um tubo na garganta de alguém que está espalhando uma carga altíssima do vírus enquanto se esforça pra respirar em angústia completa. Alguém que entrou em insuficiência respiratória, ou seja, cujos pulmões não conseguem mais respirar sozinhos adequadamente, e colocar aquela pessoa ali, familiar de alguém, respirar com a ajuda de um aparelho de ventilação mecânica. Por quantos dias, a gente não sabe. Vamos falar sobre isso então… quando a gente intuba alguém nessa situação:

1) a gente não sabe se é a última vez que alguém vai vê-lo acordado, se seremos a última pessoa a falar com aquela pessoa acordada, explicando que vamos ajudá-la a sentir menos falta de ar. Sobre isso, existem coisas que só vendo pra entender. Você já viu a face de desespero de alguém tentando respirar em angústia completa? Usando toda sua capacidade de lutar pela vida pra puxar o ar e, ainda assim, sentir-se sufocado? Não? Nunca viu? Sorte sua. 

2) não sabemos por quanto tempo aquela pessoa ficará em ventilação mecânica (respirando por aparelhos) no momento em que a colocamos nela. Essa é uma doença que, às vezes, tem deixado as pessoas por muito tempo em ventilação mecânica, e é impossível dizer por quanto tempo no momento em que ela é intubada. É impossível, inclusive, dizer se ela vai sair daquela situação…

3) a gente faz isso todo paramentado, literalmente da cabeça aos pés, cheios de plásticos por todos os lados. É muito difícil tirar tudo isso sem se contaminar, MUITO. A gente tem conseguido, mas requer cuidado e zelo, requer atenção, e cansa. Nessa parte, de retirar a paramentação após ter contato com alguém, é muitas vezes onde os profissionais da saúde se contaminaram e a pandemia ter começado antes em outros lugares nos ensinou isso. 

Bom, explicado isso, eu queria perguntar pra VOCÊ AÍ, que comenta nesses posts de QUALQUER COISA sobre o coronavírus: você teria coragem de ficar ao lado de alguém tossindo, alguém suspeito dessa doença, ou confirmado, mesmo sabendo que pode se contaminar também? Mesmo sabendo que você tem família em casa, que você teme pela sua própria vida, que você teme pelos seus colegas? Você teria coragem de ficar entrando e saindo 1000x do quarto de alguém contaminado, pra entregar os medicamentos que essa pessoa precisa, pra entregar a comida que ela precisa comer, pra ajustar as bombas injetoras de medicação, pra ajustar o ventilador mecânico, pra fazer fisioterapia que auxilie na ventilação, para higienizar o quarto, pra higienizar o paciente, enfim, PRA QUALQUER COISA? Não né? Provavelmente não. 

Os profissionais da saúde estão fazendo isso, e eles estão cansados. Eles estão cansados de ficar tirando e colocando paramentação. Você DEFINITIVAMENTE não faz nenhuma ideia do QUANTO é cansativo andar paramentado o dia inteiro, trocando de um paciente pro outro toda a paramentação pois não pode levar secreções de um pro outro, cuidando pra não contaminar os outros pacientes e não contaminar a si mesmo. Os profissionais da saúde estão cansados de ver pacientes sofrendo e famílias chorando. Estão cansados de respirar dentro de uma máscara o dia inteiro, reinalando gases que devíamos liberar no meio ambiente e não dentro da nossa própria máscara, suando, ficando com dor de cabeça, ficando estressados. 

Agora, se você chegou até aqui, eu vou te dizer do que os profissionais da saúde TAMBÉM estão cansados: de vocês comentando em páginas que isso não existe. Da gente lutando contra algo que sequer se pode enxergar, só se enxerga quando pega algum pobre familiar de alguém, e ainda tendo que repetir que isso realmente existe, e que bom que não chegou na sua família ainda pra que você acredite. CANSADOS DE REPETIR QUE QUANTO MAIS O ISOLAMENTO FUNCIONA MAIS ELE PARECE DESNECESSÁRIO. Cansados. Eu estou cansada de lutar contra a ignorância quase mais do que tirar e colocar máscara, face shield, avental de plástico, proteção de pescoço, luvas, propé, roupas do bloco, trocar tudo isso cada vez, tomar banho cada contato confirmado, etc. 

Na verdade, eu vou te dizer: eu, Pauline, definitivamente, estou MUITO mais cansada da ignorância. No hospital, a gente atende gente doente. Gente precisando de ajuda. Gente cujos familiares estão em sofrimento. A ignorância cansa muito mais, a descrença cansa muito mais, a teoria da conspiração generalizada cansa muito mais. Ficar tendo que explicar que realmente tem uma pandemia acontecendo cansa MUITO mais. Em que mundo vocês vivem? 

Por fim, a VOCÊ, que comenta nas notícias que tudo isso não existe, eu só desejo uma coisa: que essa doença não precise chegar em você ou na sua família pra que você acredite que ela existe. Coloca a mão na consciência só um pouco. Respeita quem tá trabalhando, quem tá perdendo familiar, quem tá doente, e simplesmente para de ser tão ignorante. Você nos cansa TANTO que não faz menor ideia. Você nos desanima e nos ofende. Obrigada.

Adendo: esse texto também é para você, que fura a quarentena com jantas, eventos, encontros, churrascos, aglomerações de todo e qualquer tipo. Você também nos ofende e desvaloriza o nosso trabalho. Você também se expõe e expõe os outros. A gente tá cansado de ter que explicar isso também."

Pauline Elias Josende 
Médica Anestesiologista
CREMERS 39621