“As crianças precisam saber que a diferença existe”, diz pai de menino autista de Bento em defesa da inclusão

Falas do ministro da Educação Milton Ribeiro neste mês de agosto defendendo o fim do “inclusivismo” no Brasil seguem gerando repercussão em todo o país. Em sua opinião, há crianças com “um grau de deficiência” que impediria a convivência com os demais estudantes. "O que é o inclusivismo? A criança com deficiência era colocada dentro de uma sala de alunos sem deficiência. Ela não aprendia e atrapalhava – entre aspas, falo com muito cuidado essa palavra – porque a professora não tinha equipe e conhecimento para dar a ela a atenção especial", disse em entrevista a um programa na TV Brasil no dia 09/08. Já em visita ao Recife no dia 19/08, o Ministro continuou o assunto: "Nós temos, hoje, 1,3 milhão de crianças com deficiência que estudam nas escolas públicas. Desse total, 12% têm um grau de deficiência que é impossível a convivência. O que o nosso governo fez: em vez de simplesmente jogá-los dentro de uma sala de aula, pelo 'inclusivismo', nós estamos criando salas especiais para que essas crianças possam receber o tratamento que merecem e precisam", afirmou Ribeiro.

Em meio à Semana Nacional da Pessoa com Deficiência Intelectual e Múltipla, a declaração vem sendo rebatida, principalmente, por pais de crianças especiais que tem percebido na inclusão um avanço significativo no desenvolvimento cognitivo de seus filhos. É o caso do professor Paulo Cezar Madeira, pai de Paulinho, de 11 anos. O filho foi diagnosticado com autismo nível 2 aos quatro anos e meio. Desde então, ele e a esposa, Camila Madeira, têm dado o seu melhor para garantir qualidade de vida a Paulinho. Além das diversas terapias semanais que frequenta desde as primeiras suspeitas de autismo, os pais veem sua inclusão em escolas de ensino regular como uma das medidas mais eficazes para garantir seu desenvolvimento. “Temos certeza que ele iria regredir se não estivesse como um aluno incluso. O Paulinho está em uma ascendente de desenvolvimento. Se for colocado em um local onde todos estão nessa mesma ascendente, ele tende a decair. Estudos comprovam isso”, comenta o pai. 


 

Apesar da relevância da inclusão para a evolução do filho, Paulo analisa a medida como ainda mais fundamental para o aprendizado dos demais estudantes. “O mais importante de [a pessoa com deficiência] estar em uma sala de aula é que as outras crianças passam a entender que a diferença existe. Passam a aprender como se relacionar com o diferente. Se tirar esse aluno de dentro da sala, as demais crianças não terão a oportunidade de conviver com as diferenças dessa criança e passarão a vê-la com mais estranheza”, explica Paulo. “Se fosse assim, estaríamos retrocedendo décadas em nosso país”, complementa. O pai ainda cita os comentários positivos recebidos pelos professores de Paulinho, os quais afirmam que os colegas sentem um carinho muito grande pelo filho. “Paulinho não ensina falando, porque tem uma fala restrita. Mas ensina, simplesmente, sendo ele mesmo”, relata.

Sobre a declaração do ministro, Paulo ainda critica o termo “movimento inclusivista” utilizado por Ribeiro. “É como se fosse uma lei viciosa da qual todos quisessem fazer parte. Como se dissesse: ‘quem são vocês para quererem reivindicar isso’?”, comenta. “Não se trata de um movimento. Trata-se de um direito conquistado. Se não fosse por essa lei, não teríamos vagas de estacionamento exclusivas, descontos na aquisição de veículos e benefícios para pessoas de baixa renda como o BPC [Benefício de Prestação Continuada]. Enfim, nossas crianças especiais estariam completamente desassistidas”, complementa. “Além disso, com uma declaração pública assim damos dez passos para trás, porque esse tipo de discurso dá voz para quem pensa da mesma forma”, lamenta.

Falta estrutura

Sobre a criação de salas específicas para atender os estudantes com deficiência, iniciativa mencionada pelo ministro, o pai e professor avalia como uma medida importante, mas apenas para ocasiões necessárias. “Essas salas devem servir apenas como um recurso, para que sejam utilizadas como um refúgio quando os estudantes especiais estiverem estressados ou com dificuldade de permanecer em sala de aula”, argumenta Paulo. 

Ainda em relação à fala do ministro, o pai revela que concorda em um ponto com Ribeiro: as escolas do país não estão capacitadas para receber alunos com deficiência. “Não é que haja crianças autistas que não consigam conviver com as demais. O fato é que não temos os equipamentos e o material humano qualificado e especializado para tornar essa inclusão possível”, contrapõe. 

Desde que chegou a Bento Gonçalves com sua família, em 2013, Paulo já atuou em 25 diferentes escolas na região da Serra Gaúcha, tanto em instituições federais, estaduais e municipais quanto em instituições privadas. “Nunca vi um profissional psicopedagogo especializado em autismo para ficar com eles”, revela. “Em diversas ocasiões, os profissionais das escolas vinham solicitar ajuda para mim, porque não estavam sabendo lidar com algum dos estudantes especiais”, recorda. Atualmente, apenas na rede municipal de ensino, há 248 estudantes com deficiência, sendo 16 na Escola Especial Caminhos do Aprender, 24 em escolas infantis e 208 em escolas de Ensino Fundamental, totalizando 248 alunos.

Diante da necessidade de garantir uma educação e rotina adequada a Paulinho, o pai largou seus planos de mestrado e doutorado na área da literatura inglesa para se especializar em autismo, por meio de uma pós-graduação. “Eu decidi estudar a área que meu filho precisava. E foi a melhor coisa que poderia ter feito”, afirma. 


 

A partir de suas experiências com Paulinho e de seus estudos na área, Paulo e sua esposa conseguiram encontrar a melhor opção de aprendizado em Bento para as condições do filho. “Justamente pela falta de recurso material e humano nas escolas públicas, optamos por uma escola particular que oferecia o melhor suporte a ele. Recebemos carta branca para que pudéssemos entrar e sair a hora que precisássemos e pudéssemos conversar com professores e direção sempre que necessário”, conta. “Além disso, há uma profissional qualificada sempre acompanhando Paulinho. Quando ele fica estressado, há locais de escape como a biblioteca, os laboratórios, a quadra de esportes ou até mesmo um pula-pula, para descarregar as energias”, relata o pai. 

Apesar de hoje a família viver uma rotina mais adaptada com a condição de Paulinho, o pai ainda vê uma série de desafios enfrentados por essas crianças e seus pais em todo o Brasil. Um deles diz respeito à falta de opções após o período educacional. “Para onde os jovens autistas vão depois dos 18 anos? Em Bento temos apenas uma associação que oferece oficinas para autistas adultos, mas não existe nenhum programa de inserção no mercado de trabalho”, lamenta. “Chegamos a tentar a imigração para outro país para poder fazer parte de uma sociedade que tinha um programa assim, que é o Canadá, mas não conseguimos o visto. Então nos preocupamos sobre como será o seu futuro depois da escola”, explica o pai. 

Outro desafio é o preconceito que ainda impera na sociedade. Há anos, a família não frequenta muitos locais públicos, a fim de preservar Paulinho de “olhares julgadores”. “Já aconteceu de, um dia, ele estar pulando bastante de alegria e as pessoas atravessarem a rua para não passarem ao lado dele”, recorda Paulo. “Falta empatia e mente aberta para tentar conhecer o diferente. As pessoas pensam: ‘O meu filho não tem isso, fico triste por essa família, mas não é problema meu’”, lamenta o pai. 


 

O Paulinho do 8

As primeiras suspeitas do autismo surgiram aos dois anos de Paulinho, quando alguns sinais como atraso na fala e vícios passaram a chamar a atenção dos pais. Após consultas e avaliações com diversos profissionais, foi confirmado o diagnóstico de autismo tipo 2 aos quatro anos e meio. “Quando recebemos a notícia não sabíamos muito bem o que fazer. Sentamos, respiramos e passamos pela fase de luto, que faz parte do enfrentamento do diagnóstico. Depois, passamos a adaptar nossa rotina para ele”, recorda o pai. 

Durante os últimos anos, Paulinho tem passado por semanas puxadas de terapias e estudos, que, apesar da exaustão, vinham trazendo resultados efetivos em seu desenvolvimento. Com a pandemia e a suspensão das atividades presenciais, a importância das práticas se tornou ainda mais evidente. “Ele sentiu muito a falta das terapias e das aulas. Quando íamos para Caxias do Sul em uma das clínicas, eu aplicava alguns métodos como exercícios de repetição. Ensinava frases prontas e ele repetia. Era uma atividade bem bacana que acabamos também perdendo com a pandemia”, lamenta Paulo.

Durante as aulas on-line, Paulinho também se mostrou bastante agitado e insatisfeito com a falta de socialização com as demais crianças. “Remodelamos o quarto para uma pequena sala de aula e eu tentei, do meu jeito, ensiná-lo. Mas ele começou a ter crises olhando para a tela do computador. Por isso decidimos, há um mês, agora que estamos vacinados, voltar com ele no presencial”, comenta. 

Mas, a fim de garantir uma rotina tranquila para Paulinho, os pais tiveram que aprender a lidar com os desafios diários. Para auxiliar, ele foi presenteado com um fiel companheiro, o cãozinho assistente Tommy. Além disso, adaptaram a rotina. Na escola, Paulo leva e busca o filho em horários diferenciados, para evitar o tumulto das demais crianças, que acaba o deixando agitado. No caminho para a escola, que fica na mesma quadra da casa da família, Paulinho criou um ritual próprio. “Esse caminho nunca foi fácil. Ele sempre teve mania de entrar em alguma das lojas, tocar algumas campainhas e olhar a cor do semáforo, porque se estivesse vermelho ele não caminhava. E nisso a gente percebe os olhares e precisa explicar sempre sobre a condição do nosso filho”, relata. 

Em casa, Paulinho precisa de ajuda para necessidades básicas como comer, ir ao banheiro e amarrar o cadarço. As janelas da casa são vedadas com papelão, para evitar que ele tenha crises por conta dos “hiperfocos”. “Ao lado do nosso apartamento tem um estacionamento e Paulinho acabou se focando na cancela do estabelecimento. Toda vez que o pessoal fechava a cancela antes do tempo que na cabeça dele era o correto, ele se frustrava. Um dia encontrei ele agarrado na tela protetora da janela, e a tela balançando”, recorda o pai. “Tentamos conversar com o pessoal do estacionamento para mudar a forma de fechar a cancela, porque ele fica muito feliz quando as coisas dão certo na mente dele. Mas empatia é utópica e a resposta foi negativa. Então optamos por fechar as janelas para evitar esses hiperfocos e, consequentemente, sua frustração”, lamenta o pai.

Diante dos desafios e aprendizados, o pai e professor decidiu relatar suas experiências com Paulinho nas redes sociais. No fim de 2016, criou o Instagram hoje intitulado “O Paulinho do 8”. O número faz referência ao andar do apartamento da família, o qual Paulinho memorizou com facilidade. “Quando ele fala: ‘quero ir para o 8’, é porque ele quer ir para casa”, explica. 


 

No perfil, o pai escreve textos reflexivos, como uma espécie de refúgio e, ainda, como uma forma de tornar a condição de Paulinho mais compreensível para familiares, amigos e conhecidos. Por meio dela, o pai e professor foi convidado a dar palestras em diversos locais do RS e de outros estados. Na pandemia, participou de uma série de eventos on-line, tornando as informações sobre o autismo mais claras e acessíveis. “Eu faço o meu máximo em busca da conscientização, mas nunca tentando empurrar nada na cabeça das pessoas. Eu somente relato os acontecimentos diários como uma forma de auxiliar as pessoas a se colocarem no lugar do outro e passarem a ver essa condição com menos estranheza”, afirma. 

Sobre os profissionais nas escolas 

Conforme informações repassadas pelo secretaria de Educação de Bento, a legislação prevê que os profissionais de assistência às pessoas com deficiência devam ser fornecidos para alimentação, higiene e locomoção de alunos especiais.

Os Profissionais de Apoio (monitores), são orientados e capacitados pelos profissionais do Núcleo de Inclusão e Diversidade (NID) e na escola são diretamente acompanhados pela equipe diretiva, mais especificamente pela supervisora escolar e orientador educacional. 

"Quanto à questão dos alunos surdos, temos pouco profissionais com formação em libras. Para os profissionais  que são destinados para esse público, procuramos que tenham pelo menos formação básica", afirma a secretária Adriane Zorzi.

Atualmente a rede municipal de Bento conta com 56 profissionais de apoio, que precisam ter cursado no mínimo ensino médio. Após, passam por formação e acompanhamento da secretaria. "Quanto ao número de alunos considerados de inclusão por sala, cada caso é avaliado, e verificada a necessidade individual", complementa a secretária.

Fotos: arquivo pessoal e reprodução/Instagram