“Atual cenário político não favorece nenhuma pessoa LGBT”, afirma transexual
Há décadas, o mês de junho é dedicado a manifestações em prol da comunidade LGBT, tendo seu ápice no dia 28/06, Dia do Orgulho LGBT. A data faz alusão à Revolta de Stonewall, ocorrida em 1969, em um bar de Nova Iorque. Naquele ano, frequentadores do estabelecimento decidiram se rebelar contra a opressão policial que acontecia de forma recorrente. Desde então, grupos LGBT passaram a promover manifestações sociais e culturais, a fim de levar informação e acabar com o preconceito. Em 1970, as chamadas paradas LGBT passaram a tomar as ruas de diferentes cidades, incluindo São Paulo – considerada a maior do mundo.
Com o tempo, os movimentos de visibilidade foram crescendo e se adequando às diferentes orientações sexuais e identidades de gêneros. Hoje, a sigla LGBTQIA+ busca representar as lésbicas, os gays, os bissexuais, as travestis e transexuais, os queers, as pessoas intersexo, os assexuais e todos os demais grupos e variações de sexualidade e gênero. Identidade, entretanto, se difere de sexualidade, a qual diz respeito à orientação sexual de uma pessoa, por quem ela se sente atraída. Identidade de gênero se refere à maneira como a pessoa se identifica.
Fotógrafo e presidente do coletivo de Bento "Nosso Corpo Nossa Arte", Bernardo Dal Pubel. Foto: Jadye Dal Pubel
Em Bento Gonçalves, o primeiro coletivo LGBT foi criado em 2014, pelo fotógrafo Bernardo Dal Pubel. Desde então, Bernardo afirma que tem constatado mudanças importantes e positivas em relação à afirmação de direitos das pessoas LGBT. Entretanto, ele avalia que os últimos anos têm sido caracterizados por retrocessos significativos. “Assistimos a uma onda gigantesca de conservadorismo, de fundamentalismo religioso na política, o que ocasiona um retrocesso em nossos direitos”, analisa.
Para Bernardo, ao longo do atual governo federal tem ocorrido um desmantelamento de políticas públicas e uma paralisação de investimentos na garantia de direitos e contra o preconceito, o que ocasiona “um apagão em relação às demandas do segmento, que se viu ainda mais vulnerável durante pandemia”. Comentários da ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves, de que “Menino veste azul e menina veste rosa” e a recusa do presidente Jair Bolsonaro de que a Agência Nacional do Cinema (Ancine) liberasse verbas para filmes com temática LGBT, ambas as ações em 2019, renderam amplas críticas ao governo desde o início da gestão. “Bolsonaro também já propagou ‘fake news’ de que as escolas brasileiras contavam com um ‘kit gay’, isso ajudou as pessoas criarem ainda mais preconceito conosco”, acrescenta o fotógrafo.
Coordenador da Comissão Especial da Diversidade Sexual e Gênero da OAB Subsecção de Caxias do Sul, Daniel Chies Baldasso. Foto: arquivo pessoal
O coordenador da Comissão Especial da Diversidade Sexual e Gênero da OAB Subsecção de Caxias do Sul, Daniel Chies Baldasso, comenta que o atual presidente Jair Bolsonaro tem se mostrado um político incapaz de tratar sobre assuntos da comunidade LGBT de forma isenta. “Ele tem discursos bastante inflamados e preconceituosos, o que causa um reflexo na sociedade de permissividade de uma conduta preconceituosa”, explica. “Quando eu tenho uma autoridade que desdenha de uma determinada parcela da população, minora seus sofrimentos e não trata com a dignidade que deveria, leva ao entendimento de que aquela conduta discriminatória é admissível”, pontua Baldasso.
Ausência de legislação
Mesmo após décadas de manifestações e de decisões judiciais favoráveis, o Brasil segue sem qualquer legislação favorável à comunidade LGBT. Conforme explica o advogado Daniel Baldasso, o que existem atualmente são decisões judiciais do Supremo Tribunal Federal (STF) que acabaram se tornando regras, mas sem serem convertidas em leis. Entre elas, o profissional cita a decisão e 2011 que permitiu a união estável entre casais do mesmo sexo; aquela de 2018 que possibilitou a retificação de nome e gênero de pessoas transexuais diretamente do cartório, sem a necessidade de um processo judicial; a criminalização da lgbtfobia em 2019, por meio da aplicação da lei do crime de racismo, e a possibilidade da doação de sangue por homossexuais em 2020.
“Quando falamos em preconceito estrutural, temos que considerar que a nossa sociedade não consegue fazer leis benéficas que tratem sobre o assunto. Isso não é uma questão de hoje. O nosso Legislativo é conservador, preconceituoso e baseado em premissas heteronormativas e cisnormativas”, analisa.
Essas características, conforme Baldasso, são traduzidas em uma letargia no processo de criação, discussão e aprovação de leis benéficas à comunidade LGBT. “Temos diversos projetos parados no Poder Legislativo Federal, entre eles a criação do Estatuto da Diversidade Sexual, que está paralisado no Senado desde 2017”, revela.
Foto: Bernardo Dal Pubel
Desafios que ainda persistem
Bernardo Dal Pubel foi o primeiro homem transexual e encaminhar sua carteira de identidade com nome social em 2014. Antes de descobrir sua identidade de gênero, o fotógrafo conta que viveu “sendo um quebra-cabeça embaralhado”. Com o apoio de amigos e da família, Bernardo começou a transição que seu corpo pedia, passando por tratamentos hormonais e pela mastectomia. “Lembrando que não é preciso usar testosterona para ser validado na sociedade. Temos que simplesmente ser. Ninguém precisa validar nossa vida, nosso gênero”, ressalta.
Em sua vida pessoal, Bernardo revela que teve o privilégio de estar rodeado de familiares e amigos especiais, os quais sempre ofereceram e oferecem suporte em momentos desafiadores. Além disso, ele afirma que, desde pequeno, sempre foi uma pessoa que deu e exigiu respeito de todos. Mesmo assim, ele conta que já vivenciou situações de preconceito direcionadas a amigos e conhecidos. “Ainda vivemos em uma cidade com pessoas mais fechadas, talvez por conta da falta de informação”, comenta. Há cerca de dois anos, um conhecido foi agredido violentamente em frente a um bar em Bento. “É muito difícil ser quem somos, então um pouco de empatia conosco faz muito bem. Sabe aquele comentário desnecessário? Não faça. Guarde ele para você, porque ele pode estragar o dia de uma pessoa”, aconselha.
O fotógrafo ainda critica a falta de grupos de representatividade LGBT em Bento, além da inexistência de projetos e ações voltados à causa. “Na Câmara de Vereadores não há nada em tramitação. Queriam fazer uma parada LGBT como aquela de Caxias, mas não passou na Câmara”, lamenta. “Uma parada em Bento não seria algo fundamental, mas representaria um marco para a gente”, complementa.
Em nível nacional, pessoas transexuais de baixa renda ainda vêm enfrentando dificuldade na realização de cirurgias de mudança de gênero. “A minha mastectomia eu fiz particular, porque no Brasil ainda é muito difícil conseguir pelo SUS. Tu entra em uma fila enorme, e quase ninguém consegue fazer”, revela.
Apesar das dificuldades que ainda persistem em nível municipal, estadual e federal, Bernardo vê um futuro diferente para a comunidade LGBT. “A cidade já foi muito mais preconceituosa e violenta, hoje parece que está dando um pouco mais de espaço para as pessoas LGBT. Parece que até os mais velhos estão começando a escutar um pouco mais. E percebemos isso também pela redução de casos atendidos no coletivo”, comenta. “Daqui um tempo tudo vai ser melhor, porque as pessoas estão crescendo com informações que não tinham no passado. Todos entenderão que nós existimos, que estamos aqui e que temos voz”, acredita.
Educação sexual e de gênero
Para o coordenador da Comissão Especial da Diversidade Sexual e Gênero da OAB Subsecção de Caxias do Sul, Daniel Chies Baldasso, a solução para o preconceito que ainda impera na sociedade é levar informações sobre orientação sexual e identidade de gênero para as escolas. “Não temos qualquer tipo de manifestação dessas questões no ambiente escolar. Isso gera preconceito adquirido muitas vezes do próprio lar”, reflete.
Para o advogado, o conteúdo deve ser pensado e adaptado para as diferentes idades, levando reflexões sérias, mas sem qualquer tipo de apologia. “Precisamos que as crianças entendam e respeitem as diferentes configurações de família, que tenham discernimento que relações homoafetivas não causam prejuízo a ninguém, que são relações tão sadias quanto as relações heteroafetivas”, continua.
Além disso, ele reforça a necessidade de o Brasil avançar na questão legislativa voltada às causas LGBT. “A sociedade brasileira precisa parar de se preocupar com a individualidade e começar a se preocupar com questões mais relevantes, ao invés de ficar criando preconceitos”, pontua.
Foto: Bernardo Dal Pubel
“Nosso Corpo, Nossa Arte”
O primeiro coletivo de Bento Gonçalves intitulado “Nosso Corpo, Nossa Arte” surgiu com o intuito de debater questões relacionadas a lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais, transgêneros, intersexuais, assexuais, e todo o leque representado pela sigla LGBTQIA+. E a melhor forma encontrada para uma mudança positiva na comunidade local, foi a arte. “Quando abrimos o coletivo fizemos uma mostra de arte LGBT, passando por várias cidades. Saímos aqui em Bento à noite distribuindo arte, com frases de impacto. Porque é a arte que consegue falar com as pessoas. A arte é uma forma de protesto muito poderosa”, comenta Bernardo.
Hoje o coletivo conta com 12 integrantes fixos, a maioria artistas, tendo Bernardo como presidente, Jadye Berwig Dal Pubel como vice-presidente e Verônica Trevisan, mulher trans, como secretária. O grupo ainda é formado por um psicólogo e uma advogada, que prestam apoio gratuito a todos que estiverem precisando.
Por meio de sua fotografia, que se enquadra no estilo Arte Queer, Bernardo mostra, sem tabus, a vida, a luta, o sofrimento, as alegrias e os direitos das pessoas LGBTQIA+. Com a obra “A Origem, o preconceito revelado", o fotógrafo conseguiu levar seu manifesto a exposições e eventos nacionais e internacionais, além de expor um de seus trabalhos no museu Leslie-Lohman Museum of Art, em Nova Iorque. O coletivo também participou de diversos eventos locais, promovendo palestras em espaços públicos e nas escolas, firmando parcerias com ONGs e entidades.
Atualmente, por conta da pandemia, o coletivo tem prestado assistência on-line, auxiliando pessoas em situação de rua, desempregadas, pessoas que necessitam de apoio psicológico ou apenas de uma indicação de consulta médica, por exemplo. “Auxiliamos com conselhos e amparo a quem talvez esteja passando por alguma situação difícil. É só entrar em contato conosco”, complementa.
Entenda a sigla LGBTQIA+
L = Lésbicas
São mulheres que sentem atração afetiva/sexual pelo mesmo gênero, ou seja, outras mulheres.
G = Gays
São homens que sentem atração afetiva/sexual pelo mesmo gênero, ou seja, outros homens.
B = Bissexuais
Diz respeito aos homens e mulheres que sentem atração afetivo/sexual pelos gêneros masculino e feminino.
T = Transexuais
A transexualidade não se relaciona com a orientação sexual, mas se refere à identidade de gênero. Dessa forma, corresponde às pessoas que não se identificam com o gênero atribuído em seu nascimento. As travestis também são incluídas neste grupo. Porém, apesar de se identificarem com a identidade feminina constituem um terceiro gênero.
Q = Queer
Pessoas com o gênero “Queer” são aquelas que transitam entre as noções de gênero, como é o caso das drag queens. A teoria queer defende que a orientação sexual e identidade de gênero não são resultado da funcionalidade biológica, mas de uma construção social.
I = Intersexo
A pessoa intersexo está entre o feminino e o masculino. As suas combinações biológicas e desenvolvimento corporal – cromossomos, genitais, hormônios, etc – não se enquadram na norma binária (masculino ou feminino).
Assexual
Assexuais não sentem atração sexual por outras pessoas, independente do gênero. Existem diferentes níveis de assexualidade e é comum que estas pessoas não vejam as relações sexuais humanas como prioridade.
+
O + é utilizado para incluir outros grupos e variações de sexualidade e gênero. Aqui são incluídos os pansexuais, por exemplo, que sentem atração por outras pessoas, independente do gênero.