Bento 123 anos: mulheres fora do padrão
Uma cidade vanguardista como Bento Gonçalves só alcançou feitos admiráveis graças ao trabalho conjunto de personalidades comprometidas e engajadas em causas que condizem com seus valores. Muitas delas não chegaram a atingir a fama ou fazer parte dos livros de história. Mesmo assim, tiveram determinação para ajudar a construir a cidade. O sucesso da vida delas está na coragem de terem assumido as rédeas do destino, contrariando os padrões sociais e fazendo o bem de forma anônima. Bento possui muitas Elmas, Gemmas e Ortenilas, mulheres que mudaram a história despretensiosamente. Hoje, beirando os 80 anos de idade, elas vivem no Lar do Ancião.
A líder
Se não fosse pelos cabelos cor de algodão, Elma Teicher não levantaria suspeitas sobre sua idade. Ao estímulo de reabrir o baú de recordações guardadas em sua mente ao longo de seus 76 anos, a aposentada se revela ágil e detalha com exatidão as datas e os nomes das pessoas que cruzaram sua vida, dedicada quase que exclusivamente à saúde.
Nascida em Nova Bréscia, ela veio a Bento Gonçalves em 1960 para trabalhar como auxiliar de enfermagem no Hospital das Irmãs Carmelitas. “Desde menina, eu tinha sonhos nos quais estava cuidando de doentes. Eu nasci para fazer isso. O trato com as pessoas me realiza”, fala convicta.
O exemplo do sofrimento de sua mãe para sustentar dez filhos e cuidar do marido despertou nela uma aversão ao enlace. “Eu ficava observando aquela vida, todo aquele trabalho. Eu disse ‘mãe, eu não vou me casar. Não quero sofrer como você’”, relembra.
Depois de alguns anos como enfermeira, Elma foi escalada para trabalhar no bloco cirúrgico, auxiliando o médico Antônio Fianco Casagrande. A qualidade de seu trabalho, a personalidade de liderança e os cuidados com os pacientes chamaram a atenção do médico, que a convidou para morar com sua família. “Eu era uma espécie de secretária particular do doutor. Organizava todos os seus compromissos e tarefas diárias. Cuidava também de todos os membros da família”, recorda.
Aos 56 anos, depois de três décadas dedicadas à saúde, Elma decidiu que precisava mudar de ares. Foi quando passou a costurar para boutiques e clientes particulares, ofício que exerce até hoje. “Faço tapetes com retalhos de mostruários de tecidos, babeiros infantis e toalhas. Estou sempre inventando. Não gosto de ficar parada, preciso me ocupar, assim a gente não adoece”, receita.
Quando percebeu que estava com problemas de memória, resolveu que estava na hora de se mudar para o Lar do Ancião. “Adoro morar aqui, me dou bem com todos e sou respeitada como se fosse uma espécie de zeladora. Quando alguém tem algum problema, vem falar comigo que eu resolvo”, garante.
A vida em Pinto Bandeira
Gemma Ângela Marini nasceu em 1926 em uma colônia à beira do Rio das Antas situada na Linha Brasil, em Pinto Bandeira. Seu nome foi dado em homenagem à santa italiana Gemma Galvani. “Minha mãe dizia que eu nasci com algumas complicações, por isso fizeram uma novena para a santinha me curar. Fui batizada três dias depois com o nome dela”, conta.
Gemma foi a segunda criança da família. O primeiro, Benjamim, nasceu sem vida. Depois dela, vieram outros nove filhos, sempre a cada dois anos. Ela recorda que, de tempos em tempos, a mãe pedia para que elas e os irmãos mais novos fossem dormir na casa do seu tio, Severino Marini, no centro de Pinto Bandeira. Lá todos dormiam em uma grande cama, tomavam um café da manhã generoso e depois seguiam para casa correndo, ansiosos para ver o irmãozinho recém-nascido. “Minha mãe usava aqueles vestidos até o chão. Eu nunca vi sua barriga, não fazia ideia de quando estava grávida. Naquele tempo não falavam essas coisas para as crianças”, argumenta.
A escola ficava a quatro quilômetros de onde Gemma morava. Ela lembra que o percurso era feito a pé, usando tamancos de madeira. “Quando chegávamos perto da escola, escondíamos os tamancos no meio de uma capoeira. Tínhamos vergonha e a gente apanhava em casa se gastasse o solado”, revela.
Quando adolescente, a família se mudou para o centro do povoado. Seu pai era barbeiro e dono de um armazém de secos e molhados. Foi ali que Gemma conheceu Laurindo, um descendente de suecos que morava no outro lado do Rio das Antas. “Ele era loiro, alto, magro e andava sempre com um guarda-chuva preto pendurado no braço. Namoramos por um tempo, mas não era amor o que eu sentia, era só curiosidade”, diverte-se, levando a mão à boca, como se revelasse um segredo. “Quando decidi terminar, ele chorava e dizia ‘não acredito que a minha Gemminha vai me deixar’. Eu era chamada assim porque Gemma era um nome muito comum na época”, esclarece. Mesmo sendo uma moça bonita e colecionando admiradores, ela nunca se casou. “Um viúvo, dono de uma empresa de Bento, queria namorar comigo. Ele ficava sem jeito toda vez que me via. Um certo dia, quando estava conversando com uma amiga na rua, ele me viu e perdeu o controle do carro. Acabou subindo um barranco”, revela, rindo.
Aos 40 anos, Gemma foi morar em Porto Alegre para trabalhar na Beneficência Portuguesa, um hospital onde permaneceu por 23 anos como enfermeira. “Eu amava cuidar dos pacientes, principalmente daquelas crianças carentes moradoras de rua. Eram como se fossem meus filhos”, emociona-se. Ela se aposentou após algumas complicações relacionadas à saúde. Morou por cinco anos na capital até resolver voltar para Bento Gonçalves. Morando sozinha em um apartamento, percebeu que precisava de companhia. “Eu senti que a idade já não me permitia viver sozinha”, observa. Já se passaram seis anos desde que decidiu morar no Lar. “Adoro morar aqui. Somos uma grande família”, emociona-se.
Dona do destino
Uma mulher viajada, culta, que por duas vezes teve oportunidade de constituir família mas desistiu de última hora. “Sempre fui um ser livre, dona do meu nariz”, garante Ortenila Trevisan (foto), de 78 anos. Descendente de italianos e franceses, nasceu em Nova Bassano e veio a Bento para lecionar no Colégio dos Irmãos Maristas.
Sua vida foi dedicada ao trabalho. Com isso, teve a oportunidade de morar em diversas cidades, como Passo Fundo, Porto Alegre, Guaporé e Caxias do Sul, além de capitais e países da América do Sul.
Namorou e noivou por duas vezes, mas casamento não estava em seus planos. “Durante o namoro eu me enjoava e cansava. Fiz a coisa certa. Ficar ao lado de quem a gente não ama só por conveniência é morrer em vida”, assume.
Vaidosa e tranquila, Ortenila sabe conviver muito bem com a solidão. “Leio, gosto de pintar e tricotar. Estou aqui no Lar do Ancião há dez anos e aprendi a conviver com diferentes personalidades. Infelizmente a maioria não sabe ler, assim fica difícil conversar. Eram outras épocas. Penso nisso e percebo o quanto fui privilegiada”, conclui.
Reportagem: Priscila Boeira
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