Bento terá grupo de reeducação para agressores

Um homem apaixonado e possessivo cuja insegurança o torna violento. Uma mulher dependente financeira e emocionalmente que tenta salvar o relacionamento em nome de um grande amor. A história de Pilar e Antônio, retratada no filme espanhol “Pelos meus olhos” (2003), poderia ser a história de muitos casais que não conseguem conviver com suas próprias diferenças.

No filme, Pilar abandona o marido em plena madrugada, levando consigo o filho do casal, de nove anos de idade. Entre fichas hospitalares que registram falsas quedas de escada – inventadas para justificar fraturas e hematomas causados pelas agressões do marido – Pilar tenta tornar racionais seus próprios sentimentos: ao mesmo tempo em que não suporta mais a violência física e verbal, ela tem dificuldade em admitir que a relação está com problemas. Depois de idas e vindas, o casal tenta recomeçar o relacionamento. Procurando equilíbrio, Antônio passa a frequentar um grupo de autoajuda e a fazer terapia. Na busca do autoconhecimento, descobre-se falando sobre sentimentos e inseguranças que não imaginava existirem.

A solução encontrada por Antônio está prestes a se tornar opção também para os homens que residem em Bento Gonçalves e que tenham sido condenados por agredirem a esposa ou companheira. Na segunda quinzena de março, deve entrar em funcionamento um projeto-piloto inédito no município. Trata-se de um grupo criado para atuar na reeducação de autores de agressão, uma iniciativa conjunta entre Ministério Público, Poder Judiciário, Poder Público e entidades. Nos encontros, os homens terão a oportunidade de compreender melhor os motivos da violência e conhecer seus próprios medos, com acompanhamento de psicólogos e de outros profissionais envolvidos no atendimento a ocorrências de violência, como juízes, promotores, defensores e advogados. A iniciativa é vista de forma positiva: “é muito interessante vermos um esforço conjunto de Ministério Público, Poder Judiciário, Defensoria Pública, OAB, Brigada Militar, Polícia Civil e Poder Público”, comemora o Promotor de Justiça Gilson Borguedulff Medeiros.

Processo poderá ser suspenso

A Lei nº 11.340, conhecida como Lei Maria da Penha, prevê, em seu artigo 45, que programas de reeducação e recuperação sejam utilizados como penas alternativas a autores de agressão. O Poder Judiciário de Bento Gonçalves determinará quais os condenados que serão obrigados a frequentar o grupo, batizado inicialmente de “Grupo reflexivo para reeducação de homens autores de agressão”. Os encontros semanais acontecerão na sede do Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas), durante 12 semanas consecutivas e com duração de uma hora e meia cada.

Quem frequentar o programa – serão aceitos apenas 12 participantes, sendo que seis já foram definidos pela Justiça local – poderá ter o processo judicial suspenso. “Esperamos com isto que haja uma redução do ciclo da violência doméstica, uma vez que o autor da agressão aprenderá a lidar melhor com os próprios sentimentos, ao mesmo tempo em que vai proporcionar uma maior agilidade ao Poder Judiciário, por diminuir o número de processos”, comenta o Promotor.

A participação no grupo como pena alternativa só será aplicável nos casos em que a pena seja inferior a um ano, comum em situações onde há delitos considerados leves, sem uso de violência extrema ou arma. “Em vez de o marido ser condenado, por exemplo, a dois meses de serviço comunitário ou ao pagamento de cestas básicas, ele será obrigado a frequentar o grupo”, esclarece o promotor.

A suspensão do processo, no entanto, não será imediata à frequência: “para garantirmos que a pena alternativa realmente surtiu efeito, acompanharemos, durante este projeto-piloto, a situação das famílias para verificar se houve melhora. Se for confirmado e a iniciativa render bons resultados, poderemos oficializar o grupo em Bento Gonçalves”, adianta Borges. Para a suspensão acontecer, serão avaliados critérios como aceitação e melhora na autoestima.

Grupo para Mulheres

O Centro de Referência da Mulher (Revivi), que atua no atendimento às vítimas de violência desde 2007, é um dos órgãos envolvidos na chamada rede de proteção à mulher. O Revivi estuda a abertura de um grupo paralelo formado pelas companheiras dos autores de agressões que frequentariam o novo programa. “Seria uma forma eficiente de monitorarmos se a ideia está atingindo seu principal objetivo: quebrar o ciclo da violência”, comenta a psicóloga do Revivi, Sandra Giacomini.

Delegacia da Mulher segue sem sair do papel

Apesar de já ter sido criada através de Lei Municipal, a Delegacia da Mulher de Bento Gonçalves segue sem data para sair do papel. Enquanto isto não acontece, o Posto da Mulher atende a demanda em uma pequena sala instalada na DPPA. O prédio que abrigaria as instalações da Delegacia já foi definido – trata-se das salas onde funciona a Coordenadoria Regional de Obras do Estado, ao lado da Câmara Municipal de Vereadores. A verba para a reforma e adequação das salas – R$ 150 mil – também foi prevista pela Fundação Consepro de Apoio à Segurança Pública. Para a criação na prática, falta o aval do Governo do Estado.

E não é por falta de pressão que a burocracia prevalece. A primeira audiência relacionada ao assunto ocorreu em fevereiro de 2009. Desde então, o presidente do Consepro Geraldo Leite relata contatos e reuniões quase que mensais para tentar agilizar o assunto, sem sucesso. “Falta boa vontade política, este é o maior problema”, desabafa o presidente.

Outro fator que pode estar atrasando a liberação é a falta de policiais para atuar em delegacias da Polícia Civil, conforme noticiado pelo SerraNossa na edição do dia 21 de janeiro. “Apesar do anúncio de concurso público para preencher vagas, não vejo perspectivas de novos policiais para Bento nos próximos dois anos em função da demora habitual do processo de seleção”, lamenta Leite.

“Teria sido melhor para a vida dele e para a minha”

Vanessa (nome fictício) tem 46 anos. Da última vez em que apanhou do marido, com quem foi casada durante 20 anos, precisou ficar hospitalizada por uma semana. A labirintite que hoje incomoda a cuidadora foi uma das sequelas físicas das agressões. “Os hematomas, o inchaço e a dor passaram, sumiram. Mas as marcas que ficaram por dentro nunca mais serão esquecidas”, lamenta.

Mas nem sempre foi assim: “no início ele era amável, depois de se envolver com álcool virou este monstro”, lembra. Vanessa foi agredida inúmeras vezes, mesmo depois de divorciada do marido. Em busca de ajuda e justiça, ela seguiu todos os trâmites legais: registrou ocorrência policial, fez exames médicos, compareceu às audiências. Chegou a obter a chamada Medida Protetiva, documento que proíbe o agora ex-marido de se aproximar e, até mesmo, de telefonar para ela.

Desde a última agressão, há três anos, visita mensalmente o Centro Revivi em busca de apoio psicológico. Há situações, no entanto, que a deixam revoltada: “três anos de processo e ele foi condenado a serviços comunitários. Às vezes me pergunto se valeu a pena, afinal fiquei exposta em delegacias, hospitais e na rua, as pessoas viam os machucados, e ele foi condenado a prestar serviços comunitários. É muito injusto”, desabafa. Vanessa acredita que, se o autor da agressão tivesse sido obrigado a frequentar um grupo a exemplo do que deve iniciar em Bento no mês de março, a situação teria sido menos dramática. “Teria sido melhor pra mim e pra ele. Não só para que ele deixasse de me agredir, mas para que pudesse dar um rumo diferente na própria vida”, imagina.

Os casos registrados em Bento Gonçalves

Nem todo filme tem final feliz. Lidar com as diferenças, insegurança, ciúmes, dependência e, principalmente, admitir para si e para os outros que a relação não deu certo é uma tarefa árdua e que, nem sempre, consegue ser cumprida. A realidade de Pilar e Antônio, personagens citados no início desta reportagem, é comum nas páginas policiais dos jornais.

Brigas, agressões, ameaças e até mesmo violência sexual figuram entre os principais motivos de queixa na Delegacia de Polícia de Pronto Atendimento de Bento Gonçalves (DPPA). No local, funciona o Posto de Polícia para a Mulher, que registrou, em 2010, um total de 1.446 ocorrências de violência contra mulheres e crianças do sexo feminino. Destas, pouco mais da metade – 829 – tiveram inquéritos instaurados, ou seja, a mulher optou em processar criminalmente o autor da agressão.

No dia a dia deste trabalho, muitas histórias comovem, revoltam e chocam. “É difícil ver mulheres agredidas, não importa a intensidade da agressão. Os índices de reincidência também revoltam”, conta Aline Portella Fronza, escrivã do Posto.

Para aconselhar e encaminhar

A psicóloga Sandra Giacomini, que trabalha no Revivi desde sua abertura, prefere não julgar os motivos que levam muitas mulheres a voltar para casa mesmo depois de terem sido violentadas. “Não podemos julgar, estamos aqui para dar suporte. Mas uma coisa não se admite, não interessa os motivos: violência não pode!”, discursa.

Mais do que baixa autoestima, a maior parte das mulheres acaba sucumbindo a uma pressão social que as impede de seguir a própria vida. “Basta analisarmos trechos da própria história para compreendermos como crenças e tradições dificultam a independência emocional da mulher. Primeiro, tem a situação de a mulher ter sido criada a partir da costela de Adão, o que, automaticamente, restringe a mulher à condição de uma espécie de subproduto”, conta a psicóloga.

Outros hábitos culturais mais recentes também interferem, como o fato de a mulher utilizar o sobrenome do marido após o casamento, uma prática que, para Sandra, determina que a mulher se torna propriedade do homem. Além disto, segundo a psicóloga, há a pressão familiar e social: “mulher separada ou solteira é estigmatizada, passa a ser rotulada como alguém que não teve capacidade de ‘segurar’ o marido”. Há ainda circunstâncias como a dependência financeira e o medo de perder a guarda dos filhos, o que, segundo a psicóloga, acaba sendo o maior motivo de voltar a conviver com o autor da agressão.

Os números de 2010:

Janeiro – Ocorrências registradas: 113 / Inquéritos instaurados: 74

Fevereiro – Ocorrências registradas: 116 / Inquéritos instaurados: 74

Março – Ocorrências registradas: 147 / Inquéritos instaurados: 70

Abril – Ocorrências registradas: 110 / Inquéritos instaurados: 67

Maio – Ocorrências registradas: 126 / Inquéritos instaurados: 92

Junho – Ocorrências registradas: 90 / Inquéritos instaurados: 52

Julho – Ocorrências registradas: 114 / Inquéritos instaurados: 77

Agosto – Ocorrências registradas: 96 / Inquéritos instaurados: 57

Setembro – Ocorrências registradas: 133 / Inquéritos instaurados: 77

Outubro – Ocorrências registradas: 128 / Inquéritos instaurados: 72

Novembro – Ocorrências registradas: 132 / Inquéritos instaurados: 78

Dezembro – Ocorrências registradas: 141 / Inquéritos instaurados: 89

Fonte: Posto Policial para a Mulher de Bento Gonçalves

 

Reportagem: Greice Scotton

 

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