Conheça Giovanni Mattiello, que dá vida a Jesus durante a Semana Santa em Garibaldi
A barba e o cabelo comprido não são uma questão de estilo ou gosto pessoal, foram cultivados propositalmente ao longo dos anos. As madeixas, que costumam ser contidas por um coque durante a maior parte dos dias, ficam soltas durante a Semana Santa. É quando Giovanni Mattiello, de 36 anos, deixa de lado sua identidade e transforma-se no personagem principal das encenações do período que antecede a Páscoa.
Nesta sexta-feira, dia 14 abril, mais de 12 mil pares de olhos irão acompanhar a representação da Via Sacra em Garibaldi e conferir de perto sua atuação – a nona vez em que faz as vezes de Cristo. Sua doação ao protagonista comove a plateia, das chicotadas reais às expressões faciais milimetricamente calculadas. Um espetáculo que não perde a capacidade de emocionar, mesmo que as cenas e o final já sejam conhecidos. “De um ano para o outro o espectador muda o lugar em que está assistindo, enxergando coisas que não havia visto no ano anterior. Além disso, a emoção depende também do momento de vida presente”, observa Mattiello.
A fé, aprendida com a família ainda na infância, está marcada não apenas na alma, mas também na pele: no antebraço direito o símbolo do Movimento Emaús eterniza sua crença. Desde os 18 anos, ele faz parte do grupo, que é responsável pelas encenações da Semana Santa em Garibaldi. Em sua primeira participação interpretou um soldado. Em 2011, por desistência do ator que faria Jesus, estreou no papel principal – ainda sem barba e cabelo comprido. Após quatro anos abandonou o posto para seguir carreira no meio político. Durante o período em que ocupou funções como vereador, presidente da Câmara e secretário de Administração, preferiu desempenhar papéis secundários. Há cinco anos, ao largar a vida pública, retornou à condição de protagonista. Além de atuar, Mattiello dirige as cenas, organiza o texto e coordena ensaios e gravações (os atores gravam as falas a serem dubladas em cena para a garantia da qualidade do áudio). O trabalho conta também com apoio da esposa, Greice, envolvida na parte organizacional.
Para Mattiello, o papel principal tem um significado ainda mais especial. Graduado em Sociologia, fez um mestrado em Teologia, com especialização em Cristologia. Os conhecimentos de cada detalhe da vida de Jesus permitem dar um caráter único a cada cena ou expressão facial. “É um orgulho, uma satisfação muito grande representar o teu, de certa forma, ‘ídolo’. Faço com muito respeito. É uma experiência muito forte. Em cada gesto que eu fizer, as pessoas estão buscando símbolos para sua vida. Quando eu me visto no personagem, a concentração é total”, revela.
Para o público, um dos momentos mais emblemáticos é a crucificação. Sem óculos e com o sangue cenográfico por vezes lhe cobrindo a visão, Mattiello consegue perceber apenas parte das reações. “O que eu consigo enxergar são as pessoas em estado de oração. A atenção é total, ninguém se mexe. Grande parte está chorando”, destaca.
Como ator, suas passagens preferidas são aquelas em que está no meio dos espectadores. Ele explica que algumas cenas iniciam no palco e posteriormente deslocam-se para a multidão. Sem que o público perceba, Jesus caminha entre eles e por vezes os toca no ombro. “Tem um sentido interessante: a gente às vezes procura Jesus nos lugares errados ou o visualiza distante, quando na verdade ele está ao seu lado”, pondera.
As teatralizações durante a Semana Santa não ficam restritas à Paixão e Morte, iniciam ainda no Domingo de Ramos, passagem bíblica que retrata a entrada de Jesus em Jerusalém. O que para os atores é algo simples – Jesus montado em um jumento – pode ter grande significado para quem assiste. “As pessoas vinham até nós no final da missa chorando e querendo nos abraçar”, relata. Aliás, não são raros os momentos em que os fiéis transferem para a sua figura a imagem do verdadeiro Cristo. Um dos fatos mais marcantes ocorreu na Quarta-feira Santa de 2016, durante a celebração penitencial. Por conta do Ano da Misericórdia, instituído pelo Papa Francisco, a Paróquia São Pedro montou um cenário na sacristia por onde as pessoas eram convidadas a passar após o encerramento. Ali, encontravam Mattiello, com o figurino completo, recepcionando e abraçando um a um durante quase duas horas. “Foi uma das coisas mais fortes que vivenciei em todos os anos de encenação. As pessoas vinham e realmente não me viam como Giovanni, elas abraçavam Jesus, elas pediam perdão por coisas que tinham feito, como se fosse uma confissão, como se eu fosse Jesus. Eu quase não falava, só desejava paz”, recorda, com voz embargada e lágrimas nos olhos.
O envolvimento da comunidade em toda a programação é intenso por conta da forte religiosidade dos garibaldenses. Ele cita a figura do Frei Jadir Segala, pároco da Paróquia de São Pedro, como um dos grandes responsáveis pela presença cada vez maior de fiéis. “Nós vivemos em Garibaldi um momento de reavivamento da fé”, pondera. O maior público é registrado nas sextas-feiras, mas o objetivo da organização é atrair a atenção também para a noite de sábado, quando, após relembrar com vídeo alguns trechos do dia anterior, é encenada a ressurreição.
Os preparativos para a programação iniciam ainda em janeiro, sendo intensificados nos 45 dias que antecedem a Páscoa. São quatro domingos de ensaio, sendo o último na sexta-feira pela manhã, já com os palcos montados. A encenação envolve diretamente cerca de 180 pessoas. Os que não gostam de encenar ajudam em outras tarefas, nem que seja apenas lavando e passando as roupas dos atores. “Tem lugar para todo mundo, isso que é bacana”, resume.
Envolvimento dos jovens
Quando a Semana Santa chega ao fim, Mattiello costuma aparar a barba. Desta vez manterá o visual por conta de um novo projeto: irá filmar algumas passagens da vida de Jesus para divulgação nas redes sociais. É uma forma de também atrair os jovens para a Igreja. “A sociedade mudou a e a Igreja tem que mudar, não as suas verdades, mas a forma de comunicar suas verdades, a forma de dialogar, de ser Igreja no mundo”, pondera. As próprias encenações da Paixão são uma importante ferramenta de aproximação, tanto que muitos acabam se motivando para ingressar no Movimento Emaús.
Na visão dele, o afastamento da juventude das questões religiosas se dá muitas vezes por desconhecimento. “Esses dias dei uma palestra para um grupo de adolescentes e no final eles ficaram admirados por eu ter feito Teologia, por ser sociólogo e ser um cara com mente aberta e da razão. Ciência e fé não estão de lados opostos”, justifica. A interpretação da Bíblia, segundo ele, não deve ser feita tão ao pé da letra, já que em alguns livros, como o Gênesis, a linguagem é mítica. “Adão e Eva, por exemplo, são uma forma de retratar o gênero humano. O cristão tem o dogma da criação: Deus fez o mundo a partir do nada. Isso não quer dizer que eu vou explicar a criação a partir do que está na Bíblia, porque a Bíblia não tem a intenção de explicar. A ciência hoje não aprova a existência de Deus, mas também não desaprova. Hoje não há nada incompatível entre fé e ciência. Quem usa a ciência para explicar as razões da sua fé é mais feliz nisso”, acredita.
De Jesus a Raul
Embora o visual de barba e cabelos compridos seja cultivado somente por conta da sua relação com a Igreja, ele também pode ser útil para a atuação profissional de Mattiello. Basta prender o cabelo, vestir uma boina e colocar óculos para se transformar em Raul Seixas. As canções do Maluco Beleza são tema de uma de suas palestras: “O que ouvi de Raul”. Ele usa letras como “Ouro de Tolo”, “Diamante de Mendigo” e “Meu Amigo Pedro” para discutir questões filosóficas existencialistas fazendo uma conexão com autores como Nietzsche, Schopenhauer e Sartre. “Raul consegue atingir pessoas que não têm uma iniciação filosófica. Uso suas provocações para que as pessoas se deem conta de que é preciso pensar. Ele não é um maluco doidão, é um maluco filosófico. Não é um ‘viajão’ é um filósofo que não é de academia”, observa.
Desde 2011, quando decidiu sair do setor público, Mattielo dedica-se a palestras – já foram mais de 600 em 140 municípios do Rio Grande do Sul e Santa Catarina. A maioria é destinada a formação de professores, com o tema Valores Humanos, mas ele tem ainda outros dois projetos voltados, sobretudo, a jovens e adolescentes utilizando canções do rock nacional dos anos 80: “Da Filosofia ao Rock” e da “Da Sociologia ao Rock” – esse último com financiamento aprovado via Lei de Incentivo à Cultura. É uma forma de unir a música, uma de suas paixões, a questões mais complexas.
Ele começou como a maioria dos jovens músicos, tocando pop e rock nos bares, mas, além de cantar, gostava de contextualizar as canções. “Quando me dei conta, falava mais do que cantava”, brinca. Atualmente, além das palestras, dá aulas de teologia em paróquias da região, compõe músicas religiosas (tem três CDs lançados: “Da vida, dos sonhos e do amor”, “Coisas da Alma” e “Na ternura e no amor”) e é escritor (em 2015 publicou o livro “Nas trilhas da esperança – Uma ética para a vida a partir da Teologia de Jürgen Moltmann”).
Programe-se:
Em Garibaldi, a celebração da Paixão e Morte de Cristo na Praça da Igreja Matriz, com procissão à Ermida Nossa Senhora de Fátima está marcada para às 16h30 desta sexta, dia 14. No sábado, 15, a encenação da ressurreição ocorre às 19h, também na Praça da Igreja Matriz. Em caso de mau tempo, os eventos serão transferidos para o Ginásio Municipal de Esportes
Esta é a 22ª reportagem da Série “Vida de…”, uma das ações de comemoração aos 10 anos do SERRANOSSA e que tem como objetivo contar histórias de pessoas comuns, mostrando suas alegrias, dificuldades, desafios e superações e, através de seus relatos, incentivar o respeito.