Coringa: A Carta Fora do Baralho

Um filme do Tarantino, sem o colorido do sangue. Coringa é tão denso que arrebata pela humanidade e pela crueldade da mesma forma, fundidas num amálgama único, que traduz um abrupto sentimento de piedade, o qual parece aplacar a violência imanente ao personagem. Claro, a pegada “psique” da película alcança também o inconsciente do espectador.

Embora tenha sido gestado pelos quadrinhos, passa ao largo do perfil de todas as outras produções o gênero. Nunca uma película surgida desse universo de heróis e vilões clássicos humanizou de forma tão profunda um personagem. O protagonismo de Joaquin Phoenix, claro, é decisivo, que, aliás, só não aparece numa única cena, a acachapante e “nova” interpretação dada à morte dos pais do Batman. 

Coringa trata algo que a sociedade conhece, mas não profundamente. A loucura e a psicopatia já foram retratadas muitas vezes pela sétima arte, mas não da forma eficaz e bela como fez o filme do canadense Todd Philips. O filme tenta o espectador quando une detalhes que podem ser reconhecidos em outras obras, mas com um cariz exclusivo e atraente, juntando em um só lugar a tensão de Hans Zimmerman, a magia de Martin Scorsese, a alucinação de Jack Nicholson ( em Joaquim Phoenix) e o cenário dos sonhos, Gotham City, imitando a Nova York cinza e consumista dos anos 70.
Com esse trampolim técnico, o filme voa, conseguindo dar suporte a seu dono, que é conhecido, primeiramente, como Arthur Fleck. Phoenix começa seu trabalho impecável escondendo a loucura do futuro vilão (?) em alguém que apenas quer fazer quem está ao seu redor e a si mesmo feliz, mas falha, e falha miseravelmente. Ao externar seu jeito exótico de ser, Arthur Fleck não recebe atenção, apenas desprezo tanto por suas ações controladas (como fazer caretas para uma criança pequena para agradá-la) e espontâneas (como rir sem querer em momentos inoportunos, devido a seu distúrbio). E como não destacar a risada? O riso do palhaço doente é, de fato, o que mantém o clima do filme. 

E se em boa parte centra o foco na patologia que vitima Artur Fleck, a epilepsia gelástica, responsável pelas suas estridentes risadas, tem-se aqui o mérito da inigualável abordagem do “homem” antes do “personagem”. Veja-se que todos os filmes do segmento dedicam um tempo exíguo ao “antes” e exploram quase que exclusivamente as ações após a pujante transformação do herói ou vilão. Em “Coringa”, não! O ritmo imprimido ao filme porTodd Philips, que, aliás, antes fez uma trilogia  não mais do que razoável – “Se Beber Não Case” – é uma sinfonia de Mozart!  

Ambientado em 1981, em uma Gotham City repugnante, o tambor tocado por Phillips começa com batidas espaçadas e profundas que ressoam na angústia e no vilipêndio diuturno que vitimam Arthur e numa transição perfeita começa a retumbar com voracidade, cada vez mais alto e sequencial, culminando com a explosão do oprimido social que, ao virar um assassino e ter como alvos símbolos comuns de uma Gotham soberba que olvida seus porões, transforma-se em herói – sim, herói!!! –  da barbárie e da convulsão dos subúrbios, cujo pavio do barril de pólvora só precisava de uma faísca para ser acendido.

Durante a história, o roteiro mostra, sem freios, o que a sociedade faz com o protagonista, isto é, o rejeita, e no meio dessa rejeição, Arthur descobre algo que o faz tentar preencher seu vazio, e é aí que o Coringa começa a fazer suas curtas mas influenciadoras aparições. Depois do primeiro assassinato, Fleck entende que é errado, mas passa aos espectadores uma sensação de libertação e autenticidade. O filme se desenrola e quando o desgraçado homem percebe que ele está sendo enganado por sua mãe, suposto pai, um falso amigo e por si mesmo, o conhecido palhaço chega para ficar, preenchendo alguém que não sentia absolutamente mais nada. E desde então, o Coringa acha uma chance para brilhar, e Arthur Fleck não existe mais.

Mas Arthur, tragicamente magro, pálido, com olhar de serraceno e os sulcos ósseos forçando a caixa torácica, busca uma réstia da esperança de alegria na comédia, que acaba por virar tragédia. Ele é, de fato, muito diferente dos demais Coringas que foram traduzidos para o cinema, mais doentio, cadavérico, patológico real, lunático e até meio juvenil… mas, ao mesmo tempo, profundamente “humano”. E isso à sombra de um grande filme que recentemente espelhou o personagem, com uma interpretação brilhante de Heath Leager, falecido prematuramente.

A cena da dança na escada, seguramente, é uma das mais emblemáticas da história do cinema.

O filme acaba com uma espécie de líder popular assumindo a mente de seus companheiros rebeldes e revoltados, cansados de uma sociedade preconceituosa e exaustiva. Coringa termina no topo, no lugar do protagonista, do rei, do deus. Um louco que lidera. Um palhaço que supera normas morais. Uma risada que forja uma nação. 

A Inspiração mais óbvia de Joker  é, sem dúvida, Taxi Driver. Além da incrível semelhança na jornada de Arthur Fleck (Joaquin Phoneix) e Travis Bickle (Robert De Niro), há várias referências, como a famosa cena em que Bickle, tomado pela loucura e exaustão, simula dar um tiro em sua cabeça com seus dedos. Já do Rei da Comédia vieram os delírios de Rupert Pupkin, um aspirante a stand up  que perde a sanidade.

Mesmo tendo matrizes ilegais e completamente fora de qualquer padrão ético, Coringa entra na mente de todos que o assistem, como todos grandes clássicos fazem, e por isso, a obra passa por uma metamorfose entre o incomum e o especial. Sem dúvidas, não é só o filme, mas a história, a notícia, a pesquisa do ano, pois, alcançando nossos cérebros, Coringa jorra humanidade.

E como diz Frank Sinatra no final da película, “that’s life” (essa é a vida).

 


 


*Coautor: Pedro Dytz Marin, estudante do 9º ano do Colégio Sagrado Coração de Jesus