Cuidados paliativos: um olhar focado no paciente

O que fazer quando uma doença ameaça a continuidade da vida? Os cuidados paliativos consideram a morte como um processo natural, sem a intenção de apressá-la ou adiá-la, oferecendo um sistema de apoio que serve principalmente para minimizar o sofrimento do paciente. “Todo sofrimento é urgência. Inclusive daqueles que não dispõem de tratamento modificador da doença”, explica a médica Tamara Lazzari Zaro Chiele, coordenadora de uma equipe multidisciplinar formada por fisioterapeuta, enfermeira, dentista, psicóloga, assistente social e terapeuta que há dois meses está implantando esta filosofia para pacientes atendidos pelo Sistema Único de Saúde (SUS) em Bento Gonçalves. 

A iniciativa faz parte de um aprimoramento dos atendimentos já realizados pelo Serviço de Atendimento Domiciliar, implantado em 2005 no município e que está inserido dentro do programa nacional “Melhor em Casa”, iniciado em 2014. A proposta é que os 10 pacientes atendidos pelo programa sejam tratados com enfoque nos cuidados paliativos, o que trará uma visão holística para o trabalho que já vinha sendo realizado. São pessoas debilitadas, que não conseguem frequentar os serviços da rede, por diversas e graves patologias, mas que precisam de atendimento especializado. A implantação se dará de forma gradativa. Até o momento, a ação já abrange três pacientes – dois acamados (um com demência e outro com tumor cerebral), e outro lúcido (com doença respiratória). 

O atendimento é indicado para pacientes diagnosticados com doença que ameace a continuidade da vida, por qualquer diagnóstico, com qualquer prognóstico, seja qual for a idade, a qualquer momento da doença e em que tenham expectativas ou necessidades não atendidas. Esse tipo de olhar ganha expressão quando a busca da cura perde a efetividade, mas pode nascer até mesmo junto com o diagnóstico. Tamara cita como exemplo o diabete, uma doença crônica incurável, mas que com medicação e cuidados adequados permite uma grande sobrevida. “No Brasil, temos muito cuidado paliativo ligado à neoplasia porque ele começou, lá em 1994, dentro do INCA [Instituto Nacional do Câncer] no Rio de Janeiro e em São Paulo. Mas não é só para o tratamento com câncer. Apenas 20% das pessoas que podem ser paliadas têm câncer”, explica, citando outros diagnósticos, como doenças cardíacas, hepáticas, pulmonares e neurológicas, além de demência e pacientes com sequelas de AVC.

A estrutura é linear e os médicos estão no mesmo nível que os outros profissionais – ao contrário do atendimento em uma emergência, por exemplo, em que ele é quem dá os comandos para a equipe. O foco é nos princípios, com avaliação individual e não em seguir protocolos – como a série de procedimentos a serem realizados em caso de infarto, por exemplo. “O médico não procura resolver só o processo da doença. O cuidado paliativo tem uma visão global. Ele vê o físico, o espiritual, o emocional e o social. Muitas vezes o paciente não tem a dor física, mas não consegue dormir à noite porque fica preocupado em como vai pagar as contas”, observa. 

As decisões sobre as intervenções são compartilhadas com o paciente e o familiar. Tamara destaca que a medicina no país ainda é muito paternalista, já que são os médicos quem escolhem o tratamento. Esse outro olhar propõe respeitar a decisão do paciente, como a de não passar pelos efeitos colaterais de uma quimioterapia – o que muitas vezes gera um abandono por parte dos profissionais. Muitos pacientes preferem ter uma vida mais curta, mas com qualidade. Segundo ela, o que se faz hoje muitas vezes é prolongar a sobrevida indiscriminadamente, mesmo que isso traga sofrimento ao paciente. 

No Brasil, a cada mil pessoas, apenas três recebem cuidados paliativos, ou seja, têm uma “morte digna”. Outros países já estão mais avançados, como é o caso dos Estados Unidos, onde é comum o registro das diretivas antecipadas de vontade – um documento que detalha os procedimentos pelos quais a pessoa deseja se submeter quando não há mais possibilidade de cura. Lá também é permitida a eutanásia, conduta ilegal no Brasil que consiste em antecipar a morte. Tamara diz ser contra essa prática. No Brasil, as diretivas antecipadas são permitidas e Tamara conta que já assinou o documento para uma paciente que atende de forma particular. A conduta pode ser classificada como ortotanásia, ou morte certa, que procura respeitar a linha de morte, sem antecipar ou prolongá-la (conhecida como distanásia). “O direito à vida não implica na sobrevida”, esclarece.  

O cuidado paliativo não trata somente o físico do paciente, mas também a alma, auxiliando no ressignificado da vida nas diferentes situações impostas. “Ele entende a morte não como uma inimiga. Respeita, preserva e melhora a qualidade da vida, e também da morte", ressalta. O objetivo é que, enquanto paciente estiver vivo e lúcido, possa manter o vínculo com a família, e não ficar apenas deitado na cama. Os familiares também são incluídos nos atendimentos, especialmente trabalhando questões ligadas ao luto. “Muitas vezes o tempo de doença é muito sofrido e longo. Têm paciente com sequela de AVC que ficam acamados por 10, 12 anos”, salienta. 

Um dos grandes entraves é a dificuldade dos próprios médicos em lidar com a terminalidade da vida, um conceito, conforme Tamara, pouco trabalhado durante a formação básica, quando majoritariamente os profissionais aprendem a curar. “Aceitar a morte do paciente ainda é visto como um fracasso”, pontua. 

Saiba mais

Os cuidados paliativos surgiram na Inglaterra em 1967, quando Cicely Saunders fundou o St. Christopher´s Hospice, o primeiro serviço a oferecer cuidado integral ao paciente, através do controle de sintomas e do alívio da dor e do sofrimento psicológico. As discussões sobre viver e morrer também atingiram outro patamar quando, em 1969, a psiquiatra Elisabeth Kubler-Ross desenvolveu a sua teoria das cinco fases do luto. Essas questões têm ganham força atualmente com aumento da expectativa de vida da população.