Diarista relata face mais sombria da pandemia com novos olhos: “eu aprendi a viver”

A diarista Florisa Aparecida de Paula Camargo começou 2020 com boas perspectivas, mas nunca pensou que seria um ano de tantos desafios. Trabalhando na lavanderia da UPA 24h do bairro Botafogo, em Bento Gonçalves, Flor acreditava que todo o alarme decorrente da pandemia do então desconhecido Coronavírus seria “loucura” da mídia. “Talvez seja isso que tenha me deixado mais vulnerável”, reflete. 

A diarista trabalhava à noite na UPA, sempre a caráter: máscara, luvas e seguindo o ritual do álcool em gel – mesmo não acreditando no inimigo invisível. Até então, Flor havia internado em hospitais apenas seis vezes em toda sua vida. “Todas as visitas tiveram nome e sobrenome: Nathan, Thainara, Thais, Thales, Julia e Helen Cristina de Paula Camargo”, conta. Foi por isso que, ao se sentir cansada e desmotivada no dia 22 de maio deste ano, a diarista e sua família não pensaram que poderia ser algo sério. “Nunca fiquei internada. Nunca fiquei doente. Até então, o hospital só tinha sido motivo de alegria”, diz. 


 

Após duas consultas na UPA, Flor e sua família precisaram ficar isolados, pela suspeita da COVID-19. Cerca de uma semana depois, a falta de ar já não a deixava dormir.  Na terceira consulta na UPA, um raio-x apontou o comprometimento de seu pulmão, por conta do Coronavírus. “É uma doença que tira tuas forças, ela te dá tristeza, desânimo”. Foram dois dias de isolamento na UPA, até perceberem que ela precisaria ser entubada, ou perderia a batalha. “Eu fiquei assustada. Falava ‘não deixa eu entubar não, por favor’. Então as enfermeiras me acalmaram e o médico me falou que eu iria dormir de um a dois dias”, recorda. Nesse período, Flor descobriu que era diabética, além de estar acima do peso, o que poderia ser um fator de risco para a doença. “Eu sempre tive diabete gestacional, mas então ela reapareceu quando peguei o vírus”, recorda. 

18 dias de entubação


 

Flor foi transferida para o Hospital Geral, em Caxias do Sul, onde permaneceu por 18 dias entubada. O marido, Jose Luiz Rodrigues Camargo, e os filhos eram atualizados sobre seu estado de saúde diariamente, por telefone. Ao acordar, Flor conta que pensou ter dormido apenas dois dias, como o médico havia lhe informado. Foram mais cinco dias de internação na UTI e outros três no quarto do hospital. “Minha vontade era tomar banho, mas eu não sabia que não podia levantar. Quando fui levantar, caí. Foi então que eu descobri que tinham se passado 18 dias e não dois”, recorda. 

No quarto, Flor começou a receber cuidados de fisioterapeuta e nutricionista, para voltar aos poucos a caminhar e a se alimentar normalmente. Mas foram alguns dias até perceber os estragos que o vírus e a entubação tinham causado no seu corpo. “Eu perdi dois dentes, meus cabelos caíram muito. Eu precisava ser carregada para o banheiro. Precisava de ajuda para tomar banho, para comer… foram cerca de 30 dias desse jeito”, conta. Além de ajuda 24h, a diarista ressalta que precisou continuar isolada, sem receber visita, pois sua imunidade ainda estava muito fraca. “Depois que eu voltei a andar, minha mão ficou tremendo por muito tempo. E senti dores no peito até outubro”, comenta.  

Ao longo do processo de recuperação, Flor tentou conseguir o auxílio doença pelo INSS em cinco ocasiões. Todas foram negadas. Com isso, a diarista decidiu conversar com a empresa e se afastar definitivamente do trabalho. 

Hoje, sem dor, com dentes novos e se sentindo 100% recuperada, Flor está morando em Cuiabá, Mato Grosso, onde seu marido foi transferido pelo trabalho. “Já moramos em diversos lugares por conta do emprego dele. Mas criamos um carinho muito grande por Bento, especialmente depois de ter passado por esse período tão difícil. Quero muito voltar e rever todos”, afirma. 

Anjos da pandemia


 

Ao abrir os olhos do coma induzido, Flor conta que se sentiu triste ao não ver o rosto de seus familiares. Por outro lado, afirma que o tratamento dado pelos profissionais da saúde foi essencial para vencer o momento tão difícil. 

Antes da pandemia, a diarista recorda que costumava comentar sobre não querer precisar do atendimento do sistema único. Mas, com a vivência da luta contra a COVID, ela afirma que passou a admirar a estrutura e, principalmente, os profissionais. “Os enfermeiros e enfermeiras são uma bênção. Eles nos tratam como uma princesa para não deixar você se sentir sozinho. Eles conversavam, me acalmavam e brincavam comigo. Nunca vou esquecer da reação de uma enfermeira quando eu acordei. Ela dançava ao redor da minha cama e cantava: ‘ela acordou! Ela acordou’”, recorda. “As palavras deles são o que nos sustenta lá dentro”, continua. 

Aprender a dar valor


 

Flor afirma que a pior dor relativa à doença foi ver o sofrimento de seu marido e de seus filhos, além do olhar temeroso sobre o futuro incerto.  Todos se mobilizaram para garantir seu conforto e um tratamento eficaz, mas alguns seguem temerosos até hoje. “Meu filho Thales não consegue escutar sobre a COVID. Ele ficou bastante traumatizado”, lamenta. 

Diante de momentos de sofrimento, de isolamento e incertezas, Flor afirma que a principal marca que fica é a de valorização da vida. “De dizer mais vezes eu te amo. Depois que você passa por um susto desses, você aprende a valorizar até uma louça suja na pia. Agora eu deixo a louça lá e vou abraçar meus filhos. Porque isso é o que mais importa. Num momento você está bem, e depois pode não estar. Nós só estamos de passagem nessa Terra”, reflete. 


 

Questionada sobre as perspectivas para 2021, a diarista afirma que tem esperanças de que a pandemia vai chegar a um final. “Mas o povo precisa se cuidar, precisa acreditar que ela [a doença] existe. Porque ela só vai embora quando decidirmos que é hora de ela ir”, acredita. “Mas também peço para as pessoas se amarem mais. Valorizarem as pessoas próximas”, complementa. 
De acordo com Flor, a doença a tornou uma pessoa mais forte, com mais desejo de viver e ser feliz. “Tenho fé em Deus que essa mensagem vai ajudar muitas pessoas, que talvez possam estar desanimadas, com medo, precisando ouvir que a vida é boa e que temos que aprender a aproveitá-la enquanto há tempo”, finaliza.