Disputa por território gera insegurança e medo em comunidade indígena de Bento
Moradores de acampamento localizado na rua Iracy Foppa, no bairro São Roque, relataram momentos de pavor ao serem acordados com tiros e pedradas na madrugada de sábado, 23/10
“Acordamos com o barulho dos tiros, das pedras e dos paus que estavam atirando em nossas casas. Tentamos evitar, mas eles conseguiram invadir algumas, inclusive a minha. Não deu tempo de fugir, então tentamos nos esconder e esconder nossas crianças. Mas eles ameaçaram até elas. Colocaram armas sob a cabeça de mulheres grávidas, de crianças. Foi uma noite de terror”. Esse é o relato de uma das moradoras da comunidade indígena Sór Mãg de Bento Gonçalves, alocada em terreno municipal na rua Iracy Foppa, no bairro São Roque, sobre o conflito registrado na madrugada de sábado, 23/10. Mais de 20 famílias Kaingang residem há tempos no local, mas vêm precisando lidar com a insegurança e o medo diante de uma disputa por território que iniciou há mais de um ano.
O espaço pertence à prefeitura e foi adaptado em 2013 para servir como área de passagem a indígenas que estivessem temporariamente no município para comercialização de seu artesanato. Entretanto, ao longo dos anos, índios Kaingang foram anexando moradia e se inserindo na comunidade bento-gonçalvense, tanto no mercado de trabalho, quanto na comunidade escolar. Desde então, o grupo já passou por diversas lideranças, chegando ao atual cacique, Isaías da Silva, e vice-cacique Alexsandro dos Santos. Há cerca de um ano, conforme relato dos indígenas, um grupo de ex-moradores e de moradores de outras aldeias organizaram a primeira invasão ao local, a fim de expulsar os residentes atuais e reestabelecer a antiga liderança. Na madrugada de sábado, o mesmo episódio se repetiu, deixando pelo menos duas pessoas feridas. Entre elas, um adolescente de 13 anos.
“Eu estava deitado com o meu irmão e escutamos os tiros. Fui abrir a porta e um deles já veio para cima de mim. Consegui fugir pela janela, mas aí começaram a atirar. Um tiro pegou na minha perna”, conta o adolescente, que recebeu alta do hospital na segunda-feira, 25/10. Durante o confronto, um dos indígenas do grupo rival também ficou ferido com golpes de faca. “Ao contrário do que algumas pessoas falaram nas redes sociais, não foi um conflito interno. Foi um ataque. Eles vieram tentando matar a todos e, graças a Deus, não conseguiram”, comenta o vice-cacique Alexsandro dos Santos.
Questionados sobre os motivos que desencadearam a disputa por território, já que a terra ainda pertence à prefeitura de Bento, os indígenas atualmente residentes no acampamento explicam que se trata de mudanças de regras internas. De acordo com Alexsandro, há uma lei na comunidade que impõe aos residentes a pacificação. “Todos podem vir aqui morar e trabalhar, desde que respeitem a lei. Quem vem com a intenção de fazer baderna, a gente não aceita mesmo. Nós vivemos hoje dentro de um bairro de Bento e estamos tentando mostrar para a sociedade que somos pessoas de bem”, afirma. Conforme o grupo, hoje todos os homens estão trabalhando fora da aldeia e as mulheres se dedicam à confecção e venda de artesanato. “Nós aproveitamos a região de Bento para garantir o sustento das nossas famílias”, comenta.
Busca por reintegração da posse
Em 2019, a prefeitura de Bento Gonçalves entrou com ação na Justiça contra a comunidade Kaingang, a Fundação Nacional do Índio (Funai) e a União, solicitando a reintegração de posse da área de passagem onde os indígenas estão residindo. Entre diversos motivos, além do fato de se tratar de uma propriedade municipal, a prefeitura cita conflitos internos entre os membros da comunidade indígena, perturbações de sossego relatadas por moradores nos arredores do acampamento e a restrição que os indígenas do local estariam provocando ao acesso de outras famílias que teriam a intenção de utilizar o espaço como área de passagem.
O julgamento do processo ainda segue em andamento. Uma das últimas movimentações foi a manutenção da negativa da liminar de reintegração de posse pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4) em dezembro do ano passado. Na decisão, o desembargador federal Cândido Alfredo Silva Leal Júnior considerou que não há risco de dano grave ou de difícil reparação que justifique a concessão da tutela de urgência requerida. A medida solicitada pelo município tinha o intuito de reaver o espaço de terra imediatamente, enquanto o processo seguia em tramitação na Justiça.
Em análise liminar, a 1ª Vara Federal de Bento Gonçalves negou o pedido do município, observando o parecer da Funai que constatou que a área se encontrava pacífica após incidentes de conflitos citados pelo município. A prefeitura, então, recorreu ao tribunal pela reforma da decisão de tutela de urgência, sustentando que a permanência da comunidade Kaingang traria riscos às famílias que residem na região e aos índios que pretendem se alojar na área como passagem.
O relator do caso na corte, desembargador Cândido Alfredo Silva Leal Júnior, manteve o entendimento de primeiro grau, constatando que as 23 famílias que vivem no local possuem uma comunidade consolidada, com crianças indo à escola e adultos trabalhando na colheita de frutas e empresas do ramo. Segundo o desembargador, “a reintegração da posse ao município, neste momento, não é apta a solucionar eventuais desavenças internas entre as famílias alojadas no Município de Bento Gonçalves, tampouco é razoável sujeitá-las a episódios de violência em suas reservas de origem”.
Também em 2020, a comunidade indígena solicitou a suspensão do processo de reintegração de posse pela prefeitura, pedido que foi negado em juízo de primeira grau. A comunidade, então, entrou com um agravo de instrumento contra essa negativa, que também foi julgado improcedente. Dessa forma, o Ministério Público entrou com novo recurso, que ainda está pendente de julgamento.
Convivendo com o medo
Depois do episódio de sábado, 23/10, mulheres indígenas moradoras do acampamento relataram ao SERRANOSSA o sentimento de medo e insegurança vividos diariamente no local. “A gente nunca esperava por isso. As crianças viviam correndo para cá e para lá. Agora temos que estar toda hora chamando para ficarem sempre por perto”, relatou uma mãe que viu integrantes do grupo rival colocarem uma arma na cabeça de sua filha de 13 anos.
Algumas crianças chegam a estar há dias sem frequentar a escola devido à insegurança de percorrer o caminho até a instituição. “A Funai nos garantiu que a justiça será feita, até porque houve diversos crimes em uma noite só, como tentativa de homicídio, formação de quadrilha e porte de arma”, comentou o vice-cacique Alexsandro dos Santos.
Questionado sobre a situação irregular em que se encontram no acampamento, o vice-cacique argumentou que, hoje, não haveria outro lugar para a comunidade se instalar. “Nós saímos há muito tempo das nossas aldeias e não há mais terras para nós. Aqui temos trabalho para sustentar nossa famílias e escola para as nossas crianças”, comenta. “Mas além de não nos darem segurança, querem tirar a única coisa que hoje temos, que é um lugar para morar”, complementa Alexsandro fazendo referência ao Poder Público.
Hoje, o vice-cacique afirma que praticamente ninguém dorme à noite no acampamento, a fim de ficarem atentos a qualquer movimentação desconhecida. Além disso, famílias que viram suas casas sendo atingidas pelos disparos e suas portas arrombadas, preferem permanecer na residência de vizinhos, para se sentirem mais seguras.
Sobre o conflito
A Brigada Militar compareceu ao acampamento após receber informações sobre o conflito que acontecia na madrugada de sábado, 23/10. O fato foi remetido à Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher (DEAM) de Bento, onde a delegada Deise Salton Brancher Ruschel fez uma investigação preliminar e encaminhou ao Ministério Público Federal (MPF). De acordo com a delegada, foi solicitado acesso aos celulares de alguns dos indígenas ao judiciário, “mas eles declinaram competência”. “O Poder Judiciário Estadual disse que a competência é da Justiça Federal. Assim, a investigação ficará a cargo da Polícia Federal”, esclareceu.
Conforme a Funai, a intermediação dos conflitos extrapola sua linha de atuação, por se tratar de uma questão criminal. Mesmo assim, representantes da fundação estiveram em Bento Gonçalves no início da semana para tentar encontrar meios de apaziguar a situação. “Estamos tentando pacificar os grupos para que não se agrave o conflito entre eles”, afirmou a Funai.
“A comunidade está tentando uma vida melhor. O que aconteceu vai passar aos poucos e vamos retomando à vida normal. Esperamos que a lei seja cumprida e que os que tentaram invadir nossa comunidade sejam punidos”, comenta o cacique Isaías da Silva.