Dos primeiros raios de sol ao último urso guerreiro
A vida do fotógrafo bento-gonçalvense Bernardo Dal Pubel, 27 anos, era uma espécie de quebra-cabeça desemparelhado. Foi somente há quatro anos, quando sua transição teve início, que as peças começaram a voltar para o lugar. “Comecei a me enxergar verdadeiramente como eu era. Antes eu me olhava no espelho e pensava ‘tem algo errado’”, lembra. Bernardo nasceu Taynáh e viveu mais de 20 anos sendo algo que não era. Desde os 11 adotou o apelido de Zihza, que inventou para contrastar com a excessiva feminilidade do nome de batismo: um personagem criado para sua própria aprovação e defesa. “Quando eu ouço Taynáh parece uma bomba nos meus ouvidos. Às vezes eu nem lembro quem é”, conta. Ele é considerado um trans homem, ou seja, apesar de ter nascido com órgãos femininos, identifica-se com o gênero masculino. A busca do nome para o “segundo batismo” incluiu uma série de pesquisas, em busca de algum que fizesse realmente sentido. Ele contou com ajuda da esposa, a ilustradora e tatuadora Jadye Berwig, com quem se relaciona há oito anos, e do sócio e amigo Allex Leonardo Alles. Foi o amigo quem sugeriu Bernardo, nome que o conquistou pelo significado: urso guerreiro. Ao aliar à simbologia do seu antigo nome (Taynáh quer dizer primeiro raio de sol), a escolha parecia acertada: dos primeiros raios de sol ao último urso guerreiro. “No dia seguinte os dois já estavam adaptados com masculino e com nome Bernardo”, revela, destacando que o apoio recebido foi fundamental.
Ter crescido em uma família mais aberta foi para ele um privilégio. A mãe, por exemplo, nunca o criou com a tradicional imposição de que meninos vestem azul e meninas, rosa. “Hoje os pais já estão se informando mais e as crianças trans já estão crescendo com eles sabendo lidar com isso. Eu tenho 27 anos e nem agora minha mãe sabe lidar direito com isso”, pontua. Quando era pequeno, achava estranho se apaixonar pelas amigas da irmã mais velha. Aos 12 anos, assumiu a preferência para a família: gostava de meninas. Entretanto, já se sentia um menino, mas o caminho até fazer as pazes com o espelho foi mais longo. “Eu não me descobri, na verdade eu sempre soube que eu era um menino. O difícil foi só compreender, porque até eu ter informação – que foi há uns seis anos –, eu me reconhecia como o que a sociedade me impunha, que era uma mulher masculinizada”, explica.
Um ano antes de iniciar a transição, ele conheceu a história de João Nery, o primeiro trans homem brasileiro a ser operado, na década de 70. Ler o seu livro “Viagem Solitária” e conversar com o autor foi um processo de esclarecimento pessoal necessário. “Eu sabia o que era, mas não sabia como lidar. Quando li o livro, falei para a minha esposa: agora está explicada toda a minha vida. Tudo o que eu sou tem um nome: sou transexual. Eu não sou mulher, não sou homem, sou trans. Não quero ser um homem cisgênero, porque eu nunca vou ser. Eu sou um homem trans. Eu só descobri um nome para aquilo que eu era”, relata. Não que ele precisasse de rótulos, apenas era uma forma de facilitar o entendimento. “É muito fácil e ao mesmo tempo difícil, mais para as pessoas que estão ao redor. Para mim não foi difícil, porque simplesmente não parece que tem nada de errado. Eu nasci, eu cresci, e todo mundo deveria me ver como um menino, pelo fato de eu me sentir um menino”, conta.
Assumir-se Bernardo afastou algumas pessoas do seu convívio. No dia em que anunciou a nova identidade no Facebook, 75 pessoas o excluíram. “As pessoas importantes de verdade aceitaram”, resume. Quando sente que alguém está interessado em entender as questões de gênero, faz questão de detalhar, caso contrário nem perde tempo. Com as avós, por exemplo, teve “quase que desenhar” para poder explicar. “Por mágica, ou amor de vó, elas me respeitaram como menino automaticamente. Foi mais fácil até que para os meus pais”, recorda.
A TRANSIÇÃO
Bernardo nunca se enxergou como mulher e, apesar de adotar um visual mais masculino, foi com a transição que conquistou a aparência que tem hoje, com barba e voz grossa. O processo já dura quatro anos, sendo três deles com aplicação de injeções de testosterona e um com uso de fitoterápicos que aumentam a produção do hormônio masculino. Na primeira vez em que procurou um médico, foi encaminhado para o Programa de Transtorno de Identidade de Gênero (Protig), em Porto Alegre. Desde 2008, o Sistema Único de Saúde (SUS) atende pacientes que optam pelo processo transexualizador (o que inclui cirurgias, inclusive de redesignação, e tratamento hormonal), mas a espera é longa. Há quatro anos, quando Bernardo procurou o serviço, recebeu a ficha de número 1.200 e até agora não foi chamado. “Se tivesse esperado pelo SUS eu não ia estar feliz. Eu sou feliz agora? Sim”, responde.
Pela dificuldade de encontrar profissionais familiarizados com a questão, muitos transexuais assumem o risco da automedicação – um dos fatores que, aliado à violência e ao suicídio, fazem com que a expectativa de vida de transexuais e travestis no país seja de apenas 35 anos. Foi o que Bernardo fez durante quatro meses, comprando testosterona no mercado negro. Além do perigo de aplicar as injeções sem acompanhamento, pagava muito mais: enquanto hoje, com receita, compra o hormônio em qualquer farmácia por R$ 7, pela internet pagava R$ 100, além do custo do frete. No caso das trans mulheres é ainda mais fácil, já que não é preciso receita para comprar anticoncepcionais (usado na tentativa de ficar com características femininas). Outro motivo para a ilegalidade é o constrangimento. Na primeira vez em que Bernardo foi comprar a testosterona, mesmo tendo a receita em mãos, o farmacêutico lhe exigiu um laudo de doença mental. Ao apresentar, foi informado de que o medicamento estava em falta e ainda foi chamado no feminino.
Preocupado com a saúde e com o perigo de sobrecarga do fígado – ele tem estateose hepática – o fotógrafo procurou um clínico-geral, que após dois meses recusou-se a seguir o atendimento alegando temer o desenvolvimento de um câncer. Bernardo chegou a interromper o tratamento por dois meses até encontrar um psiquiatra especializado em gênero em Bento Gonçalves. Além de seguir a transição com acompanhamento – faz exames de sangue a cada três meses e um check-up anual –, conseguiu laudo para a realização de mastectomia (retirada total das mamas e reconstrução do peitoral). Ele está economizando para custear o procedimento – algo em torno de R$ 10 mil – para não precisar depender do SUS, mas não tem pressa: já aprendeu a conviver com os seios e muitas vezes sequer usa o binder (espécie de faixa usada para compressão). Por enquanto não está nos planos passar por uma operação de redesignação sexual, um procedimento raro, complexo e arriscado, que ainda está engatinhando no Brasil – no caso das trans mulheres a cirurgia é mais comumente realizada.
A rotina para manter as características masculinas inclui a aplicação de testosterona a cada 21 dias e o uso diário de um medicamento que reduz os níveis de estrogênio e evita que menstrue (até não fazer a cirurgia para retirada do sistema reprodutor). Por conta do preconceito que sentia e por ser chamado pelo nome de registro quando ia ao posto de saúde, Bernardo optou por aplicar as injeções em casa com auxílio da esposa. Ele ainda não sabe por quanto tempo irá fazer o tratamento hormonal, mas sabe que não será para o resto da vida. O certo é que precisará de acompanhamento, para manter as características masculinas e evitar que volte a menstruar.
A ARTE DA DIVERSIDADE
Foi na fotografia que Bernardo encontrou uma forma de ganhar a vida e de expressar-se. “Ou você se vira, dando um jeito na sua própria vida, abrindo seu próprio negócio, ou você tem uma família que ajuda, ou faz como a maioria das trans mulheres, que tem que ir para a rua por não ter outra oportunidade”, lamenta. Ele revela ainda que já foi recusado em entrevistas de emprego mesmo tendo experiência no cargo, o que atribui ao preconceito. “Aqui em Bento ninguém ia me dar trabalho. Teria que ir para Porto Alegre ou eu finjo que sou cis, que nasci assim, o que jamais vou fazer”, acrescenta. Por conta de ser uma cidade mais contida, na qual o preconceito ainda é velado, os casos de agressões físicas são mais raros do que em grandes centros.
Além de eventos aos finais de semana e de ministrar aulas de fotografia, ele também trabalha junto com a esposa no estúdio de tatuagem. Para dar vazão aos sentimentos, faz fotos autorais por hobby e depois as revende. No ano passado, 20 de suas obras foram expostas na Fundação Casa das Artes, na mostra “A Origem – O Preconceito Revelado”. “As minhas fotos falam mais do que eu. A arte ajudou completamente na minha transição porque botei todo o meu sentimento nestas obras. Ela me ajudou muito a entender quem eu sou e a passar para os outros, como uma forma de expressão e de aprendizado. A arte é uma forma muito boa de passar a informação e fixar o não preconceito. Meu descobrimento e minha transição andaram junto com meu trabalho”, analisa.
Depois das primeiras fotos, Bernardo descobriu que o que fazia tinha um nome: Queer Art. Esse movimento artístico surgido nos Estados Unidos aborda, de forma direta ou indireta, elementos que discutam questões de gênero, identidade e sexualidade. As imagens servem para chocar e provocar a reflexão. Além dele, apenas outros três artistas no país fazem este tipo de arte. Em busca de reconhecimento, enviou seus trabalhos para curadores de museus estrangeiros. A persistência deu resultado: suas obras foram expostas no Festival Internacional de Arte Queer de Lisboa, em 2014, e no Festival de Arte Trans da Argentina, em 2015, além de ter uma obra presente no Leslie Lohman Museum of Gay and Lesbian Art, de Nova York – o primeiro museu de arte que representa o mundo LGBT.
LUTA PELO NÃO PRECONCEITO
Bernardo conta que desde a adolescência sofria preconceito. Mesmo antes de iniciar a transição, sempre teve níveis elevados de testosterona, o que ocasionava o crescimento de pelos no rosto e o obrigava a “fazer a barba”. Por conta disso, foi apelidado de mulher barbada. “Ter barba só me dava mais certeza ainda. Para mim, naquela época, mostrava que meu pensamento estava correto, que eu era um menino”, avalia.
Hoje, mesmo com os signos masculinos que carrega no corpo, como as roupas e a barba – não que ela seja necessariamente masculina, ressalta, já existem mulheres que usam – algumas pessoas ainda empregam os pronomes no feminino ao dirigirem-se a ele. “Você olha para uma pessoa com roupas de menino, com barba na cara, que quer ser chamado de Bernardo, e vai chamar de ‘ela’? É por ignorância ou maldade?”, questiona.
Ele defende a importância de falar sobre o assunto com as crianças, para que cresçam sabendo respeitar as diferenças e lidar com a transexualidade. “Daqui a um tempo vai ser melhor, porque as pessoas crescem com informações que não havia no passado. Tudo o que é diferente demais incomoda as pessoas”, comenta ele, que é convidado para dar palestras, mesmo que para pequenos grupos.
Ele foi o primeiro trans da cidade a encaminhar a carteira com o nome social, em 2014. Segundo ele, existem no município dois trans homens e três trans mulheres que assumem sua identidade, pessoas com quem teve contato através das atividades do coletivo “Nosso Corpo, Nossa Arte”, que coordena. O espaço surgiu para debater questões relacionadas a lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e transgêneros (LGBT), mas a participação é menor do que ele gostaria. “Não que a militância na internet não seja válida, mas as leis são feitas por quem? Nós estamos fazendo alguma coisa, e a gente tem que resistir e mostrar que não estamos querendo benefícios, mas coisas básicas como poder ser chamado pelo nome que escolhemos e usar banheiros públicos”, exemplifica.
Esta é a décima primeira reportagem da Série “Vida de…”, uma das ações de comemoração aos 10 anos do SERRANOSSA e que tem como objetivo contar histórias de pessoas comuns, mostrando suas alegrias, dificuldades, desafios e superações e, através de seus relatos, incentivar o respeito.
Fotos: Allex Alle