“É um pesadelo! Nenhum profissional de saúde pensou um dia viver isso”

O paciente tem 50 anos, sem comorbidades conhecidas, e está prestes a ser entubado. A médica do Hospital Tacchini Pauline Elias Josende faz uma ligação de vídeo para que ele possa se despedir da esposa. Ao desligar o telefone, o homem olha para a doutora e pergunta: “tu acha que vou morrer?”. Essa é a rotina comum de quem tem que lidar com aqueles que estão lutando pela vida, especialmente contra a COVID-19. A médica respondeu: “o senhor é novo, estamos aqui em muitos para te cuidar. Agora a falta de ar vai aliviar, vai ficar tudo bem”. As palavras de carinho são uma forma de acalmar o paciente, pois a verdade é que ninguém sabe se vai ficar realmente tudo bem. Um levantamento realizado pelo Estado aponta que 60% dos pacientes entubados nos hospitais, infelizmente, não sobrevivem.

O relato da médica é um desabafo postado nas redes sociais na noite em que o Hospital Tacchini entrou em colapso, no sábado, 06/03. Ela e outros profissionais da saúde vivem o desgaste de um trabalho de mais de um ano na linha de frente da pandemia e o cenário não para de piorar. Pauline mostra uma foto da sala de recuperação do bloco cirúrgico do hospital, que hoje se tornou a única ala de UTI para atender pacientes não COVID. “O bloco cirúrgico foi fechado, só temos uma sala para cirurgias de urgência, e todos os funcionários do bloco agora são funcionários dessa UTI. Todas as outras UTIs do hospital viraram UTI COVID e estão cheias. Não cabe mais ninguém. Temos oito pacientes em regime de UTI em leitos do pronto-socorro do hospital. Temos vários pacientes no andar de internação (nos quartos) piorando a cada minuto que passa, e eles provavelmente também precisarão de UTI (que não tem). Os leitos de UTI foram mais do que dobrados, e estão faltando mesmo assim”, descreve.


 

Ela ainda complementa que, mais do que espaço, aparelhos, estrutura e demais equipamentos, o hospital chegou no limite de recursos humanos. “Estamos exaustos. Estamos cansados e a única coisa que cansa mais que a COVID é a ignorância. É a negação de que estarmos aqui hoje é nossa culpa sim. Conseguimos fabricar aqui no Brasil uma variante muito mais violenta, e dia após dia estamos vendo jovens sem comorbidades serem entubados, doenças mais graves em todas as faixas etárias, pulmões mais comprometidos, muito mais mortes”, desabafa.

“É a luta mais inglória que já vivi”, desabafa médica

A médica e diretora-técnica do hospital Tacchini, Nicole Golin, corrobora que se não bastasse o pesadelo real que se tornou o enfrentamento à COVID-19, e de tudo que os profissionais da área da saúde estão vivenciando – o colapso do sistema de saúde, o cansaço e o esgotamento físico e mental –  as equipes ainda são obrigadas a lidar, segundo ela, “com a cegueira de vários”. “Saí as 23h ontem do hospital. Retorno daqui a pouco. Estamos preocupados com os pacientes, mas também com nossos colegas, nossas equipes, dando seu máximo. E ainda assim, nesse momento crítico, sou obrigada a ler comentários surreais na minha rede pessoal. Pessoas ainda afirmando que é tudo alarmismo, que tem que distribuir pílulas mágicas (quem quer, só ir comprar), que isso, que aquilo. Eu passei a bloquear, coisa que não fazia. Estamos num momento de alucinação coletiva. Estamos vendo jovens entrando graves no hospital, pessoas precisando de UTI em quantidades que nenhum serviço dá ou dará conta, não dá para se iludir, e ter que ler alguns comentários como os que temos lido é o cúmulo do absurdo”, lamenta a médica.

Ela comenta que o cenário vem mudando em poucas horas e a preocupação é com as novas variantes, que podem ser mais letais. “Estão circulando sem nenhuma restrição, replicam mais rápido, a velocidade dessa replicação causa falhas no vírus, surgem mutações. E assim segue. Sem restrição e distanciamento reais, e vacinação rápida e em massa, não se enxergam perspectivas de mudar o cenário logo. É um pesadelo, nenhum profissional de saúde jamais imaginou viver o que se está vivendo. Não tem como ter noção”, aponta. 
Ela ainda apela para que a comunidade entenda e colabore. “Não tem espaço para discussão política, sobre remédios, ou acusarem o hospital de estar se beneficiando.
É afrontoso. Todo mundo dando 1000% lá dentro. É a luta mais inglória que já vivi”, desabafa.

“Essa noite perdemos mais alguns pacientes para essa batalha. É triste porque alguém está chorando por eles essa hora”

Faz poucas horas que Vini Tormes chegou do plantão da madrugada deste domingo, 07/03. Ele atua no Núcleo Regulatório, que avalia o cenário de cada paciente, para encaminhar ou não para leitos de UTI. As escolhas difíceis que a equipe tem que tomar aumentou juntamente com a proporção de pacientes que chegam diariamente ao hospital. Ele comenta que, no início da pandemia, o paciente ficava um dia no máximo aguardando leito, mas agora são de 8 a 10 e essa fila nunca diminui. “Não é fácil. O hospital cria leitos, mas são ‘improvisados’ e logo são ocupados e em pouco tempo já não existem mais. As equipes estão cansadas. Estamos todos com os nervos à flor da pele, exaustos mesmo”, desabafa.

Ele também comenta sobre os inúmeros ataques sofridos pelos profissionais de saúde pelas redes sociais. “O que deixa a gente mais triste é que quando estamos um pouco de calma e vamos ler alguma notícia, é só gente debochando do que acontece”, lamenta.
Além de conviver com as lutas dentro do trabalho, todos têm suas famílias, que também passam por momentos difíceis. “Eu tenho minha sogra internada, com leucemia, e minha maior preocupação é que ela venha precisar de UTI, porque não terá”, desabafa. “Essa noite perdemos mais alguns pacientes para essa batalha. É triste porque eles são família de alguém, alguém está chorando por eles nesta hora”.