Eficácia de tratamento precoce ainda não é consenso entre profissionais da saúde

Diante da grave situação da pandemia do Coronavírus em Bento Gonçalves, com o colapso do Hospital Tacchini e o aumento de casos graves e mortes, muitos moradores voltaram a defender o protocolo de tratamento precoce. Na Câmara, vereadores como Anderson Zanella (PP) e José Antônio Gava (PDT) citaram o tratamento como solução que deveria ter sido adotada pelo Poder Público para evitar o momento atual – considerado o pior desde o início da pandemia no município, em março do ano passado. “O tratamento precoce, só não vê quem não quer. Deu resultado e está dando resultado para quem está fazendo”, declarou Gava durante sessão ordinária de segunda-feira, 08/03.  Zanella também citou a “prevenção” como medida para evitar o agravamento do Coronavírus, além da testagem em massa e isolamento – o que já vem sendo adotado pela prefeitura de Bento Gonçalves e pelo governo do Estado com o projeto Testar RS. Por meio dessa iniciativa, conforme a prefeitura, todos os pacientes sintomáticos que buscam atendimento são testados.

Há um ano do início da pandemia, a eficácia do tratamento precoce ainda gera debates e opiniões controversas entre a população e os próprios profissionais da saúde. Conforme o médico psiquiatra e presidente da Associação Médica de Bento Gonçalves (AMEB), Rodrigo Casagrande Tramontini, ainda não há um consenso entre os profissionais sobre o tratamento, “já que as evidências são insuficientes para que possamos embasar recomendações”, afirma. 

Diante desse cenário, a culpa do agravamento da pandemia vem sendo depositada no Poder Público e nas instituições de saúde por não adotarem esse tipo de protocolo. Questionando essa afirmação, Tramontini afirma que, com base em evidências disponíveis no momento, não é possível afirmar que uma maior difusão do tratamento precoce mudaria este cenário. “Cabe ressaltar que devemos ter cuidado ao compararmos nossa comunidade com outras tantas, pois são inúmeros os fatores que influenciam na prevalência de infectados e de casos graves de um local para outro do país (incluindo disponibilidade de leitos, número de profissionais de saúde e de agentes comunitários ativos, rastreamento de casos, aplicação de exames, rigidez nas recomendações de distanciamento social e na fiscalização dessas medidas, meios de transporte utilizados, entre outros)”, ressalta. 

Ainda conforme o presidente da AMEB, médicos infectologistas têm avaliado que o momento atual é provavelmente resultante da chegada de novas variantes do vírus – mais agressivas e transmissíveis –, da queda na adesão das medidas de higiene e de distanciamento social (principalmente pelos mais jovens) e da lentidão do programa de vacinação. “Infelizmente, não existe uma solução única que irá virar a página, e devemos agir em diversas frentes na batalha contra o vírus”, pontua. 

Autonomia na prescrição

Apesar da falta de evidências comprovando a eficácia do tratamento precoce nos casos de COVID-19, o médico Rodrigo Tramontini afirma que a Associação Médica se posiciona de acordo com o Parecer n°4/2020 do CFM e com a Declaração de Helsinque. Esse último documento ressalta a autonomia do médico em prescrever “medidas terapêuticas não comprovadas e inovadoras que considerar adequadas, especialmente em casos onde não existam tratamentos bem estabelecidos pelas evidências científicas e se, em seu julgamento, essas mesmas medidas oferecerem a esperança salvar vidas, reestabelecer a saúde ou aliviar o sofrimento”, explica. O presidente da associação reforça que, nesses casos, é imprescindível o consentimento informado do paciente.

Protocolo aplicado no município


Foto: Divulgação/Prefeitura de Bento
 

A distribuição de kits do tratamento precoce contra a COVID-19 começou a ser realizada na UPA 24h em julho do ano passado. Desde então, conforme dados da prefeitura, cerca de 9 mil kits já foram entregues a pacientes que chegaram com sintomas da doença no ambulatório fast track, na UPA do Botafogo, e no PA Zona Norte, no bairro São Roque. Ainda conforme a administração pública, o objetivo é atenuar, em estágios iniciais, as infecções causadas pelo Coronavírus, mediante autorização do paciente, em casos considerados leves e moderados.   

Entretanto, os kits não contêm medicamentos como a hidroxicloroquina, que mesmo sem comprovação, seguem sendo defendidos por autoridades, inclusive pelo presidente da República, Jair Bolsonaro. “Nós disponibilizamos, conforme entendimento médico e conforme entendimento clínico médico e paciente, um kit preventivo. Nós não estamos trabalhando com hidroxicloroquina. Nós trabalhamos com vitamina C, vitamina D, zinco e Ivermectina, e a gente tem a possibilidade, conforme entendimento clínico e médico, do profissional receitar também Azitromicina”, explicou a secretária de Saúde, Tatiane Fiorio, em pronunciamento na Câmara de Vereadores na semana passada.

Durante a ocasião, Tatiane citou um levantamento feito com pessoas que utilizaram o kit preventivo, destacando que não se trata de um estudo científico, tendo em vista que não há um grupo controle. “Nós separamos somente aqueles que utilizaram o kit que tinha antibiótico [vitamina C, vitamina D, zinco, Ivermectina e Azitromicina]. Então foram 509 pacientes em Bento Gonçalves. Desses 509 pacientes, a gente teve 11 internações em leito clínico, somente duas internações em leitos de UTI e somente um óbito”. O resultado do levantamento também foi apresentado ao Ministério Público.