Especial Dependência: “A virada, 53 anos depois”

Com nove anos de idade, J. W. experimentou pela primeira vez bebida alcoólica e um cigarro improvisado com uma folha de fumo. Foi o primeiro passo para uma dependência em outras drogas como maconha, cocaína e haxixe. Aos 61 anos, depois de ser internado no hospital devido a uma overdose e após conhecer o trabalho realizado pela Comunidade Terapêutica Rural de Bento Gonçalves, resolveu buscar ajuda. Hoje, já graduado (como são chamados os pacientes que cumprem o tratamento até o fim), está realizando estágio em outras comunidades para se tornar monitor e auxiliar outras pessoas na luta contra o vício.

Por achar um gesto de “gente grande” e influenciado por algumas primas, J. W., hoje com 62 anos, experimentou seu primeiro cigarro aos nove anos. Já tinha por costume tomar goles da cachaça do pai, o que fez com que, gradativamente, sua dependência evoluísse para outras substâncias. “Naquela época eu chegava a pegar alguns troquinhos na capelinha da minha mãe para comprar cigarro e cachaça. Com 17 anos, quando saí de casa, comecei a usar maconha, mais por curiosidade. Na primeira vez, provocou uma sensação diferente e depois, em busca dessa mesma empolgação, comecei a aumentar a dose. Por mais que eu fumasse, a sensação nunca era a mesma da primeira vez. Foi quando comecei a usar cocaína e após haxixe. Junto a isso eu bebia cachaça e fumava cigarro”, relata.

O casamento fez com que as drogas mais pesadas fossem deixadas de lado, mas J.W. continuava fumando e bebendo cachaça. “Chegava a fumar cinco carteiras de cigarro por dia e tomar quatro litros de cachaça. Às vezes eu usava maconha, mas isso era menos constante”, relembra. A família, sem desconfiar de seu envolvimento com drogas, questionava o fato de ele estar sempre embriagado. “Eu caía na rua e não sabia como chegava em casa. Até hoje tenho problemas de memória por causa do excesso das drogas. Se me pedirem se eu furtei coisas ou mesmo tirei objetos de casa, não sei informar. Tem algumas páginas em branco na minha vida”, conta. 

Necessidades

Na época em que a bebida e as drogas tomavam conta da vida de J.W, até comida chegou a faltar para seus filhos. “Eu trabalhava como pintor e muitas vezes não cumpria o expediente. No final de semana, quando percebia que não tinha nada em casa para colocar nas panelas, eu trabalhava no domingo para ter o que minha esposa e meus filhos comerem. Foi nessa época, de grave crise, que eu comecei a usar novamente cocaína, mas dessa vez eu me injetava em vez de cheirar”, conta.

Apesar de passar praticamente todos os dias embriagado e sob efeito de algum tipo de entorpecente, ele não se considerava uma pessoa viciada. “Eu negava para a minha família que era usuário. Tinha vergonha e ainda afirmava ser contra quem usava drogas. Minha família nunca desconfiou da minha dependência, só descobriu quando eu fui internado na Comunidade”, pontua.

Desafio

Pelo fato de gostar muito de cachaça, J. um dia resolveu misturá-la com cocaína. “Eu pegava uma garrafa de cachaça e colocava um pouco de cocaína dentro, sacudia e deixava no sol. Sempre escondia uma garrafa dessas para mim. Teve vezes em que misturei raspas das minhas próprias unhas ao pó. Estava tão fissurado que eu só queria era sentir a pancada da coisa”, relembra.

A família vendo tudo aquilo chegou a interná-lo no hospital para fazer desintoxicação, mas ele sempre continuava a tomar cada vez mais. “Eu até tinha sido orientado pela enfermeira do posto do bairro onde moro para buscar tratamento no Caps-ad, por um tempo frequentei, mas continuava usando tanto álcool como droga, por não me ver como um dependente. Achava que quando eu quisesse parar iria conseguir. Mas isso é um grande engano. Eu ia às reuniões e continuava a tomar porres cada vez mais fortes”, conta.

Foi durante um desses porres que ele foi internado novamente no hospital, após cair desacordado. “Não sei como, até hoje, e porque fui parar no hospital. Lá, um paciente que estava na cama ao lado comentou sobre a Comunidade Terapêutica, disse que o tratamento era gratuito e que eu poderia me recuperar.  Mas só me motivei a ir quando um médico que atendia no hospital falou que minha recuperação não era possível, devido ao grave histórico de dependência e pela minha idade. Por teimosia, decidi ir ”, explica. No início, J. acreditava que a Comunidade fosse um local para a realização de exames.

Descoberta da família

A família descobriu a dependência de J.W. em cocaína quando ele já estava internado na Comunidade sob pretexto de se tratar contra o alcoolismo. “A vida de um viciado vira um inferno. Eu havia perdido tudo e por pouco não perdi a minha família também. Naquele momento eu queria voltar a ser gente, ter uma vida nova e viver minha vida em paz. Foi meio chocante para meus familiares quando ficaram sabendo. Mas apesar de tudo, não tenho vergonha do meu passado. Não posso esconder o que aconteceu. Devo usar tudo o que passei para orientar outras pessoas a não caírem nessa armadilha. A Comunidade Terapêutica foi a melhor coisa da minha vida”, conta. Ele ainda acrescenta que com passos pequenos, em nove meses de internação ele voltou a ser alguém.

Monitor

Durante sua internação J.W. passou a escrever pequenos poemas, versos e textos relatando o que ele sentia e alertando sobre os perigos do uso de bebida e drogas. Por acreditar que sua missão, a partir de agora, deve ser ajudar pessoas que passaram por problemas semelhantes ao seu, quer se tornar um monitor em outras Comunidades Terapêuticas. “Lá eu soube o que era a doença e sou grato a todos que, de uma forma ou outra, me auxiliam na recuperação. Aprendi, com disciplina, religião e educação, a levar uma vida mais decente. Sinto-me seguro ajudando outras pessoas e com isso me reforço. Como dizia um monitor da Comunidade: o remédio entra pelos ouvidos e o veneno sai pela boca”, destaca.

Apesar de ter seguido o tratamento até o fim, J.W. ainda tem medo de recair, por isso evita frequentar bares ou botecos que possuam balcão. “Quando preciso de alguma coisa, vou no mercado ou peço para alguém buscar no bar. Nunca recaí e não toco nem mesmo em um cigarro, desde o dia em que fui internado. Como eu estou hoje, quero continuar e ter uma vida nova. Só por hoje ou por mais 24 horas, procuro ficar sóbrio, o que pode mudar meu comportamento”, finaliza.

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“Cheguei a beber acetona”
“Do álcool ao crack”

 

Reportagem: Katiane Cardoso

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