Especial Dependência: “Do álcool ao crack”

C.C, de 35 anos, não é o primeiro, tampouco o único, a entrar sem querer no dramático mundo da dependência química. A experiência, que começou de forma inocente quando ele tinha 14 anos de idade, virou um pesadelo para ele e para a família. Foram nove meses de internação na Comunidade Rural Terapêutica de Bento Gonçalves para que o ex-dependente reaprendesse a viver sem álcool, cigarros e entorpecentes. Hoje, ele busca forças na fé, na família e nos ensinamentos apreendidos durante a internação para se manter longe do vício.

Como em muitos casos, a trajetória começou com as chamadas drogas lícitas, entre as quais o álcool e o cigarro. Por não serem consideradas ilegais, são comercializadas de forma ampla. E é justamente esse livre acesso que torna ainda mais grave a dependência. “Eu via as pessoas bebendo e quis experimentar. No início, era mais graspa e vinho. Aliado a isso, eu também fumava cigarros e achava o máximo. A maconha veio um pouco depois. Com 15 anos, estava reunido com uns amigos e resolvi provar. Eles me deram um baseado, mas não fumei na hora. Fiquei umas duas semanas com ele guardado, antes de decidir fumá-lo. Eu acreditava que não tinha acontecido nada comigo, só que quanto mais eu fumava, mais precisava para me satisfazer. Teve uma época em que eu fumava de 20 a 30 baseados por dia”, relembra. Depois disso e da sensação de que nunca era suficiente, C. resolveu partir para a cocaína. “Fui movido pela curiosidade, usei e novamente não me fez nada, pelo menos eu achava que não fazia. No início, eu conseguia me satisfazer comprando R$ 10 em buchas, mas depois não era mais o suficiente. Chegava a gastar R$ 100 e não me sentia satisfeito. No final, eu acabava bebendo álcool por não ter dinheiro o bastante para comprar toda droga necessária”, conta.

Para sustentar o vício, C. vendia suas próprias roupas e pegava pequenas quantidades de dinheiro dos pais e até alguns objetos da família. “Eu sempre negava os furtos, pensava que pegar R$ 10 não ia dar em nada, mas sempre dá. Todo viciado é manipulador. Mente muito e acaba se enrolando na própria mentira, contando uma atrás da outra para encobrir as coisas”, descreve.

Descoberta da família

Foi somente depois de sete anos que a família descobriu que ele estava enfrentando um grave problema com as drogas. “Minha mãe estranhava o fato de eu estar sempre bêbado, mas ela não sabia das drogas. Um dia, acabei deixando resquícios no meu quarto e ela descobriu. Meus familiares sugeriram que eu buscasse ajuda em uma fazenda de tratamento. Eu não queria ir, mas fui  por causa da minha mãe. Passei somente uma semana lá e não quis mais”, relata. Para C., o principal problema era não reconhecer a dependência. “Eu não me via como viciado, achava que quando eu quisesse, largaria tudo, mas isso não acontece. A pessoa que não admite o vício sempre acha que vai usar e não vai se viciar”, enfatiza. Após essa primeira internação, ele decidiu que iria morar em São Paulo e levar uma nova vida. A decisão foi motivada pela hipótese de a dependência ser causada pela influência negativa dos amigos e não por falta de autocontrole. “Eu era tachado de maconheiro e minha família também sofria com isso. Então resolvi partir”, justifica. Hoje ele entende que a ida para São Paulo serviu apenas como fuga, para tentar se esconder do problema.

Vício no crack

Na capital paulista, C. trabalhava como garçom em um restaurante e morava com outros funcionários em um alojamento. “Lá parei com a cocaína, mas voltei a beber. E foi em uma dessas loucuras que experimentei o crack. Foi a minha perdição. O crack é devastador, a pessoa se termina. Nessa época eu bebia duas garrafas de cachaça por dia. Estava tão na fissura que diariamente ou eu bebia ou usava. Foi quando comecei a me sentir meio louco e a vida perdeu o sentido para mim. Esqueci da família, dos amigos, de tudo”, relembra. Ele então resolveu tirar férias e voltar à cidade. “Eu voltei pior do que quando fui. Estava pele e osso”, relata. A mãe questionava a magreza do filho e o fato de ele estar sempre embriagado, mas ainda não sabia que estava viciado em crack.

Tentativa de acabar com a vida

Aos 28 anos, C. não via mais esperança na vida e resolveu acabar com o sofrimento dele e da família. “Foi minha mãe que me encontrou pendurado em uma corda. Tive uma parada cardíaca e permaneci três dias internado na Unidade de Terapia Intensiva (UTI)”, conta. Após esse episódio, ele foi novamente internado em uma clínica de recuperação, mas sem efeito. “Fui obrigado, não queria. Permaneci por 34 dias e continuei usando. Falava que gastava o meu dinheiro e quem cuidava da minha vida era eu”, relata.

Por um período ele voltou a viver em São Paulo, mas o problema se agravava dia após dia. De volta a Bento, uma nova internação e um novo fracasso. Ao todo, foram seis anos de idas e vindas de tratamento. No último ataque de fúria antes da última internação, precisou ser retirado pelo irmão e pela mãe de um telhado onde estava com uma foice na mão. “Eu estava tão louco que ou eu me matava ou eu ia embora. Só lembro que meu irmão veio falar comigo e me tirou do telhado. Não lembro como cheguei lá. Foi quando minha mãe me falou sobre a Comunidade, que era um local para tratamento de dependentes químicos e que era tudo de graça”, conta. Apesar de inicialmente se mostrar relutante, ele pensou no assunto e pediu para a mãe que o ajudasse porque não aguentava mais aquela situação. C. foi novamente ao Caps-ad, onde já tinha recebido outros tratamentos e resolveu tentar novamente.

Recuperação

Para C., a chave para a recuperação foi ele ter admitido que estava doente e que precisava de ajuda. “Foi ótimo o tratamento. Claro que tem seus altos e baixos, mas a Comunidade é para quem quer mesmo se tratar. Hoje agradeço a Deus por não ter perdido a minha família e por eles terem me apresentado o local”, destaca. O apoio de pessoas que também estavam internadas ou que trabalhavam na comunidade foi essencial para os dias em que a vontade de ir embora era maior do que a de permanecer lá. “Meu maior inimigo sou eu mesmo. Tenho que desabafar e tentar evitar o máximo os pensamentos ruins”, conta.

C. foi o quinto paciente a ser internado na Comunidade Rural e permaneceu internado durante nove meses. Em um caderno, anotou o nome de todas as pessoas que passaram por lá e as que, como ele, escolheram melhorar de vida e continuar o tratamento. Além de continuar sendo atendido no Caps-ad, ele frequenta grupo de apoio a alcoólatras e a igreja, onde encontra seu maior reduto. “Ainda tenho medo de recair, mas continuo me vigiando. Hoje vejo tudo de ruim que a droga e a bebida fizeram a mim e à minha família. Não tenho vergonha do meu passado, aprendi a conviver com ele e hoje sigo os 12 passos, só por hoje”, finaliza. 

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Reportagem: Katiane Cardoso

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