Gastronomia: o resgate ao pão de cada dia

A aparência rústica, o peso e a casca grossa podem espantar em um primeiro momento. O inconfundível som da crosta sendo rompida pela faca serrilhada libera um aroma intenso, é o suficiente para deixar as papilas gustativas em polvorosa. O corte revela um miolo alveolado, cuja maciez casa perfeitamente com a camada crocante que o recobre. O sabor, levemente azedo, é diferente de tudo o que você já provou. A descrição pode parecer exagerada para quem nunca saboreou um pão de fermentação natural, mas basta a primeira mordida para ter certeza que a iguaria está acima de qualquer outro que você já tenha experimentado – especialmente para quem está acostumado com os que sobrevivem ensacados e intactos por semanas a fio nas gôndolas do supermercado.

Assim é o pão feito por Tissiani Zorzi, 30 anos, a Tissi. A cozinheira, como gosta de ser chamada, o prepara em casa e vende sob encomenda. Desde a mistura dos ingredientes até o momento em que ele sai quentinho e aromático do forno, transcorrem até 72 horas. Há um ano ela usa o mesmo fermento, feito à base de água e farinha integral por ela e pelo marido, Alexandre Chaves, que atua como enólogo aos finais de semana e que, durante o restante do tempo, é encarregado pela parte logística do pequeno negócio. A produção artesanal inclui ainda croissants e crostatas (com frutas da estação e sem adição de açúcar) que fazem parte do cardápio do café de uma livraria de Bento Gonçalves.

Tissi é cozinheira há seis anos. Fez um curso no Senac logo que veio para Bento Gonçalves e trabalhou na cozinha de um restaurante e na confeitaria de um hotel. Há quatro anos, quando a irmã Giovana, de 10 anos, veio morar com ela, optou por deixar o emprego e trabalhar em casa. “Pensei em fazer docinhos ou bolos, mas todo mundo faz isso, seria só mais uma. O que vou apresentar de diferente? Fui notando que tenho facilidade com massas em geral, tortas de frutas. Não gosto muito de corantes e coisas artificiais, fui encontrando o meu caminho, seguindo a intuição, o que eu sabia fazer de melhor”, conta. No início ela vendia em escritórios próximos à sua residência e depois passou a fornecer para uma cafeteria que recentemente fechou as portas.

Ela considera pão de fermentação natural uma evolução do seu aprendizado e, ao mesmo tempo, um resgate às origens – antigamente era comum as nonas fazerem o pão com um fermento produzido por elas à base de batata. O segredo, além da paciência para cultivar o fermento – ele precisa ser alimentado diariamente – e respeitar as etapas de produção, é usar ingredientes de boa procedência. A farinha, por exemplo, vem de um moinho em Pinto Bandeira – a das marcas comerciais absorvem menos água, segundo ela. “Este pão é mole comparado ao pão que as pessoas costumam fazer em casa. Tem que fazer dobras a cada tantas horas, é um processo de um dia inteiro para moldar”, explica.

Seu primeiro contato com este tipo de produção aconteceu há dois anos, quando ganhou de um casal de amigos uma “muda” de um fermento centenário vindo de Curitiba. As receitas pesquisadas em sites estrangeiros não se adaptaram à farinha nacional. “Ficava muito mole, era um terror. O pão saía um disco voador, uma pedra”, lembra. Por falta de regramento ao

alimentá-lo, o fermento acabou morrendo. Decidida a seguir no processo, tentou sua própria criação. Acertou somente na terceira tentativa, quando usou farinha integral no lugar da branca. Após uma semana começaram os primeiros testes, mas os pães ainda ficaram irregulares. Ela estima que foram necessárias duas semanas até que o fermento atingisse o ponto ideal e pudesse ser usado. Hoje produz de cinco a seis pães por semana, que devem ser encomendados com pelo menos dois dias de antecedência.

Muitas pessoas costumam guardar o fermento na geladeira, mas, como o usa regularmente, Tissi prefere deixá-lo à temperatura ambiente. As características do pão – aroma, aparência e sabor – dependem da qualidade do fermento. O longo tempo de fermentação melhora a digestão do trigo – o que pode diminuir a sensação de estufamento que algumas pessoas sentem ao ingerir alimentos com glúten. “O pão feito em casa tem farinha, água e sal. O pão industrializado tem um monte de ingredientes no rótulo que não se sabe o que é”, argumenta.

O casal deixou seus empregos com carteira assinada para ter mais tempo para dedicar-se à família e hoje vive basicamente da renda gerada pelas receitas artesanais e de alguns extras aos finais de semana. “A gente faz alguma coisa que é nossa, que a gente acredita”, resume Chaves. Um dos projetos futuros é morar no interior, vivendo da agricultura – sem deixar de lado, é claro, a produção de pães e a confeitaria.

Valorização dos produtos locais

A cada fornada, além da dedicação e da paixão pela cozinha, ao colocar a mão na massa Tissi procura transpor para seus quitutes uma filosofia de resgate das origens e valorização dos pequenos produtores. Os ingredientes usados vêm de fornecedores da região, dando preferência também à produção orgânica. Sendo assim, sua cozinha respeita a sazonalidade – a crostata de uva, que fez muito sucesso nos meses anteriores, já não está mais no menu por conta do fim da safra. “Se a gente não tem tomate no inverno, é por um motivo”, observa.

Suas receitas são uma forma de perpetuar o que já faz parte do seu cotidiano. O leite que consome em casa, por exemplo, ela compra diretamente dos produtores e com ele prepara doce de leite, ricota e iogurte. Outra concepção que ela tenta mudar é de que este tipo de produto é muito elitizado. “Ainda tem essa ideia de que comer orgânico e comprar direto do produtor é mais caro, isso tem que ser derrubado”, argumenta.

Cozinhar em casa, comprar mais alimentos na feira – convencional e ecológica – ou cultivar uma horta de temperos no apartamento são formas de buscar uma relação mais consciente de consumo e, ao mesmo tempo, questionar o processo de industrialização da comida. Para os que no dia a dia não têm tempo de dedicar-se à cozinha, ela aconselha escolhas mais conscientes. “Não precisa comprar a massa seca, pode comprar da senhora que faz a massa fresca e vende ali na esquina”, exemplifica. “As pessoas têm dinheiro para comprar refrigerante, mas não conseguem comprar uma laranja para fazer um suco. É tão mais barato ir à feira e comprar um quilo de laranja”, complementa.

A proposta de resgate às origens é também uma forma de quebrar o chamado terrorismo nutricional tão comum atualmente – o termo é uma definição da engenheira agrônoma e nutricionista francesa radicada no Brasil Sophie Deram, que critica dietas e modismos como cortar glúten, lactose, ou determinados nutrientes. “Uma massa não é mais uma massa, é um carboidrato. Ninguém mais fala ‘vou fazer um frango’, tem que ser uma proteína. Vejo entre as minhas amigas, que estão sempre em dieta, a gente se reúne e não sabe mais o que cozinhar”, lamenta Tissi.

Projeção nacional

Há algumas semanas, o talento da catarinense que há sete anos vive em Bento Gonçalves ganhou projeção nacional. A chef e jurada do programa “Masterchef” Paola Carosella publicou em sua conta em uma rede social a foto de um dos pães feitos por Tissi com uma legenda carregada de elogios e emoção. “Eu falei para ela trocar a vergonha por orgulho. O que ela faz é lindo, único e vale muito. Ela é uma dessas mulheres como tantas outras que admiramos e nos emocionam”, escreveu. As mais de 17 mil curtidas da imagem aumentaram a procura por seus quitutes – vizinhos que não a conheciam e até pessoas de São Paulo entraram em contato querendo encomendas – e ela já estuda uma forma de estruturar a comercialização on-line programando as fornadas semanais conforme sua capacidade de produção.

O encontro com Paola aconteceu no início do mês quando a equipe do programa esteve na região para as gravações de uma prova do reality show culinário transmitido pela Band. O marido de Tissi estava trabalhando em uma das vinícolas onde foi filmada parte das cenas e aproveitou o intervalo para falar com a chef. A intenção era apenas gravar um recado para a esposa, já que ela é uma de suas grandes referências na cozinha – outros nomes que a inspiram são Alain Passard, Francis Mallmann, Gabriela Barretto e Marcelo Schambeck. Ao tomar conhecimento do trabalho, a chef disse que gostava deste tipo de pão e pediu se lhe trariam um – por sorte (já que o preparo leva até 72 horas), Tissi estava preparando um para a família.

No dia seguinte Tissi, a irmã Giovana e o marido foram ao encontro da jurada. Com o pão, levaram também uma crostata de frutas vermelhas. Além do abraço apertado e de um exemplar autografado do livro “Todas as Sextas”, a cozinheira também foi presenteada com o convite para um pequeno estágio com Paola no mês de junho. Por conta da vergonha, Tissi sequer fez uma foto para registrar o encontro. “Foi bem bacana o que ela escreveu. Ela escutou tudo o que eu disse, me deu vários conselhos nessa linha de ser protagonista, de se tornar uma referência, de trabalhar em prol do que a gente acredita. Ela disse que vai fazer mais isso, de incentivar as pessoas, principalmente mulheres. Estamos nesse momento de sororidade e ela disse que vai divulgar mais essas histórias. Deu sorte de ser comigo a primeira. Uma coincidência feliz”, comemora.

Para saber mais, acesse www.fb.com/cozinhadatissi

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