Hipócrates e os Hipócritas

Dentre as frases de Umberto Eco de que gosto muito, aquela que diz que a internet e as mídias sociais deram voz a uma legião de imbecis é a minha preferida. Não porque é, talvez, a mais conhecida, inclusive entre as mídias sociais, e repostada também por alguns de seus idiotas, mas também pela mensagem que, ao final, ela nos traz. 

Hoje, todas as pessoas entendem sobre tudo. Ou acham que entendem. Hoje, todas as pessoas opinam sobre tudo. Sabendo ou não o que se está falando, o senso comum é o veredito final, é a voz da razão da maioria. 

Note-se a importância e a profundidade disso, já que veredito tem sua raiz no latim e significa “dizer a verdade”. 
Pois bem – e mais uma vez a ideia é propor reflexões e não sentenças, vereditos –, na semana que passou, um episódio foi por demais marcante para todos nós: a história do tio que abusou da sobrinha de 10 anos. E mais chocante ainda foi, a meu ver, a declaração deste, dando conta de que não somente ele é que deveria ser investigado, mas sim o avô da criança e também outro tio, que também teriam cometido os abusos. Ora, para ele, ao que parece, tratava-se de um comportamento corriqueiro, praticado por mais membros da família contra a mesma menor, enquanto que, em relação a esta, e, por consequência, todos os demais, os fatos somente vieram à tona pela gravidez. Não fosse essa, talvez ninguém tivesse ficado sabendo de nada. Pelo menos não agora… 

Sabe-se que, pelo nosso sistema legal, há, somente, três casos de abortos que podem ser considerados legais: aquele que causa risco de morte da mãe; aquele cuja gravidez decorre de estupro; e aquela cuja criança não desenvolverá o cérebro, cuja anomalia é chamada tecnicamente de anencefalia. Nenhum outro caso. Essa menina de 10 anos, dessa situação, teve autorização judicial e interrompeu a gravidez. Feliz ou infelizmente… 

Seu histórico, ao que se sabe, não é de uma vida fácil: o pai, preso; a mãe, morta. Criada pela avó em uma casa com mais membros da família, dentre eles esse tio que admitiu o abuso, a menina acabou vulnerável a uma das mazelas da vida, para mim, a mais brutal: o estupro, cometido por alguém a quem deveria ter por protetor, um tio, um familiar. 

O outro lado disso, todavia – e isso vem sendo cada dia mais aprofundado por mim, nos meus estudos –, é que a mente criminosa nem sempre é uma mente criminosa pura e simples. Ela decorre, comprovadamente, muitas vezes, de convivências sociais, sim, quando comportamentos humanos extremos são tidos por aceitos, mas também em casos de subdesenvolvimento humano, com poucas condições de sociabilidade e acesso à nutrição ou os mais básicos cuidados com a saúde e bem-estar. 

Não estou, aqui, defendendo o criminoso ou o estuprador. Muito menos culpando a família ou a criança. A reflexão proposta é no sentido de que, a cada contexto, espera-se um resultado diferente. E por mais que o senso comum aceite a morte do bebê nesse caso, ou condene a morte do bebê e aceite a morte do acusado, que admitiu o fato, nenhum deles propôs, pelo menos os que eu vi, o essencial: condições básicas de vida e saúde para aquela família, bem como tratamento médico e psiquiátrico para todos. Afinal, e isso é uma posição minha, quem abusa de uma criança não pode ser considerado um criminoso pura e simplesmente, mas sim um doente, que precisa muito de ajuda. 

Até a próxima!

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