“Hoje o jovem tem todas as ferramentas para crescer sem preconceito”

Um período dedicado à reflexão do papel no negro na sociedade brasileira. A Semana da Consciência Negra – celebrada próximo à data de morte de Zumbi dos Palmares, 20 de novembro, figura importante na luta contra a escravidão no Brasil colonial – traz temas que estão em pauta diariamente. A militância em torno combate aos preconceitos sociais faz parte da vida de Zilda Marques da Silva Nuncio e de Salete Justino de Oliveira Melo há pelo menos 20 anos, quando foram dados os primeiros passos para a criação da Sociedade Cultural 20 de Novembro, em Bento Gonçalves. Presidente e diretora social da entidade, respectivamente, elas comemoram os avanços dos últimos anos e o trabalho desenvolvido nos âmbitos educativo, cultural e social. “Agora podemos falar. Tempos atrás a gente tinha que engolir o preconceito e ficar quieto. Era normal ofender e xingar”, recorda Zilda. 

Desde criança ela conta ter convivido com o preconceito. Era uma das poucas famílias negras nas redondezas onde morava – onde hoje é o bairro Vila Nova. O pai era detonador e a família se estabeleceu no município por conta do seu trabalho na construção da rede ferroviária na região. Ela lembra que houve vezes em que os pais de amigos não deixaram que os filhos brincassem com ela por conta da cor da pele. “Isso machucava bastante, mas a gente aprendeu com nossos pais a tirar de letra”, explica. Foi pelo anseio de buscar algo melhor para o seu povo que se engajou no movimento. “Unidos somos mais fortes”, pontua.

Morando em Bento Gonçalves há quase 40 anos, Salete sofreu o preconceito na pele quando veio para o município. Trabalhou em muitas casas de família, seja fazendo faxina ou ajudando no período da safra, e sentia que era vista apenas como alguém que só servia para realizar aquele trabalho. “Isso me deixava muito triste. Eu comecei a pensar: qual é a nossa diferença? Só a pele. Vi que não podia abaixar a cabeça, que tenho o mesmo valor, que sou igual a todo mundo, que só a minha pele é diferente”, destaca, lamentando que a mulher negra ainda seja vista por muitos somente pelo lado da beleza e sexualidade.

Se hoje ainda sofrerem alguma situação de preconceito, o sentimento já não é o mesmo. “Sei que isso ocorre por ignorância da pessoa e procuro não brigar”, destaca Zilda. 
 
Respeito 

Ensinar o respeito é um dos focos de atuação da entidade, que preza por um trabalho continuado. “Desta forma ganha o branco e ganha o negro”, comenta Zilda. Nas palestras ministradas nas escolas, mais do que mostrar os elementos culturais, o objetivo é conscientizar que o negro teve um papel importante na formação do Brasil, não restringindo-se aos capítulos dos livros de História que retratam apenas o lado da escravidão sem abordar os legados deixados, como as danças, a culinária e as influências no vocabulário. 
É na conversa com crianças e adolescentes que elas percebem que o preconceito não é algo nato, é ensinado pelos adultos, muitas vezes em casa. “Hoje o jovem tem todas as ferramentas para crescer sem preconceito”, pontua. Através de vídeos e imagens apresentadas, Zilda diz notar bastante sensibilização dos estudantes com a causa. 

Para isso, não é preciso ser negro. João, de 13 anos, um dos filhos adotivos de Zilda, se posiciona em discussões com os colegas, em especial situação de desrespeito com um amigo de origem haitiana. A conversa também é a base da educação que Salete procura dar em casa para a filha de quatro anos, de que a cor da pele não importa. 

Muitas crianças não se veem negras. Zilda acredita que muitas não se autodeclaram dessa forma até mesmo por conta dos preconceitos que os negros sofrem. “No início da palestra perguntamos quem é negro e quase ninguém levanta a mão. Ao final, quando repetimos a pergunta, muitos já passam a se reconhecer”, garante. Questões como a autoestima são bastante trabalhadas, seja com as crianças ou com adultos. Desta forma mostram que não é preciso ter vergonha do cabelo crespo e que os negros, em especial também as mulheres, podem ser o que quiserem ser. 

Conhecimento

É na base do conhecimento que a Sociedade Cultural 20 de Novembro busca disseminar o respeito. A entidade ainda luta para conseguir uma sede própria, um espaço que serviria não apenas para realizar os eventos de conscientização e confraternização, mas também para disseminar informação. Zilda, que sonha em concluir a faculdade de Biblioteconomia, projeta uma biblioteca com obras de autores negros e também sobre a história do povo. “O acesso ao conhecimento pode fazer a diferença”, conclui. 

Cotas não são "mimimi" 

Entre os temas que causam polêmica e dividem opinião está o sistema de cotas, sejam elas raciais ou sociais. “As políticas públicas para os negros não são ‘mimimi’”, defende Zilda. Seus argumentos têm base histórica, comparando com outras etnias e também com a realidade de outros países. Ela cita o exemplo dos imigrantes italianos, que vieram ao país com a ilusão de que aqui encontrariam um cenário de fartura, e ganharam lotes onde podiam plantar e ficar com o que colhessem. Situação bem diferente da dos negros, um povo livre que foi tirado dos seus países de origem e aqui foi escravizado, sem poder ficar com o que produzia. “O que as políticas públicas querem é equilibrar essa situação”, argumenta. Além disso, ela aponta ainda que o Brasil foi um dos últimos países a libertar os escravos, o que ocorreu por conta de pressões externas e que não ganhavam nada ao serem libertos. “Se duas pessoas têm as mesmas oportunidades, o que vai diferenciar é se a pessoa tem vontade ou se quer algo, mas as condições são iguais. A cota dá oportunidade de chegar ao mesmo lugar, mas se não for um bom aluno, se não se esforçar, não adianta”, pondera. 

Semana da Consciência Negra inicia na segunda-feira

Entre os dias 19 e 25 de novembro, a prefeitura de Bento Gonçalves, por meio da secretaria de Cultura, e com apoio da secretaria de Educação, promove a 11ª Semana da Consciência Negra, que conta ainda com a parceria da Sociedade Cultural 20 de Novembro, Movimento Negro Raízes e Instituto Federal do Rio Grande do Sul – BG. A programação conta com diversas atividades, entre elas, exposição no Museu do Imigrante, círculo de palestras no IFRS com Roda de Capoeira Angola e Cultura Popular, noite de samba e movimentação do povo de religião na Via Del Vino, entre outras. Participam ainda da organização do evento os grupos Ciclos de Percussão, Africanamente – Escola de Capoeira de Angola e Akara – Povo Tradicional de Matriz Africana de Bento Gonçalves. O evento é gratuito e aberto ao público.

Programação
19/11 – 16h: Abertura do evento com uma solenidade na Câmara de Vereadores;
20/11 – 18h30: Vernissage da exposição “Faces de Vidas Negras” com objetos/fotos/imagens/vestimentas/literatura da cultura no Museu do Imigrante
20/11 – 20h: Falando Sobre: “Semana da Consciência Negra“, com manifestação surpresa na Sala de Cinema da Fundação Casa das Artes
21/11 – 08h: Quarta Cultural
22/11 – 19h: Círculo de palestras no IFRS com Roda de Capoeira Angola e Cultura Popular
Início às 19h com a abertura do evento.
Das 19h15 às 19h45: Palestra: Educação, as relações étnicos-raciais e as cotas com Gregório Grisa
Das 19h45 às 20h45: Palestra com Marcus Ribeiro, Solana Corrêa e Lisiane Pires sobre as Religiões de Matriz Africana
Das 20h45 às  21h: coffe break
Das 21h às 21h45: Capoeira Angola e Cultura Popular com Natália  Giacomello
23/11 – 20h: Noite do samba na Rua Coberta com arrecadação de 1kg de alimento através do programa Cultura do Bem
24/11 – 10h: Povo de Axé pede passagem – Movimentação do povo de religião na Via Del Vino
25/11 – 14h: Domingo da diversidade na Via Del Vino (em caso de más condições climáticas o evento será transferido)
 

Esta é a 101ª reportagem da Série “Vida de…”, uma das ações de comemoração aos 10 anos do SERRANOSSA e que tem como objetivo contar histórias de pessoas comuns, mostrando suas alegrias, dificuldades, desafios e superações e, através de seus relatos, incentivar o respeito.