Incertezas nas videiras
As mãos que aram a terra, plantam, podam, tratam e colhem estão calejadas. Os produtores de uva da Serra Gaúcha, especialmente de Bento Gonçalves, há anos sofrem com as incertezas acerca da produção da fruta, essencial para a renda de suas famílias. Os altos custos de produção, aliados ao baixo preço pago pela uva, têm desanimado produtores de diferentes cantos da cidade. Além disso, a dependência das condições climáticas para bons resultados de produção preocupa a cada dia mais.
O SERRANOSSA conversou com algumas famílias produtoras de uva de diferentes distritos da cidade e viu de perto a angústia e a preocupação não só com a próxima safra, mas sobre o futuro de suas vidas. Não está sendo fácil viver com as incertezas e isso tem levado muitos a diminuírem a área plantada, a arrendarem as terras e até a desistirem da plantação.
Gentil Cacinelle, de 75 anos, morador do Vale dos Vinhedos, recorda ao lado de sua mulher, Lourdes, de 73, da feliz época em que a produção beirava os 120 mil quilos de uva. Hoje, esse número é muito menor: não ultrapassa os 20 mil quilos. Desanimados, só não venderam as terras a pedido dos filhos, que encontram na casa dos pais um refúgio de boas lembranças da infância e ponto de encontro de toda a família. “Não tenho mais ânimo para continuar aqui. Gastamos bem mais do que ganhamos. Acabei vendendo uma parte da terra, arrendando outra, e estou com poucos hectares só para ter o que fazer”, desabafa Gentil, que entrega sua produção para uma vinícola do Vale. “Estão pagando R$ 0,46 pelo quilo da uva Isabel. Cada ano está baixando mais. Não tem mais futuro plantar uva”, comenta.
Já Valmor Somensi, também produtor do Vale, arrendou suas terras para um familiar. Ganha parte do lucro da produção, mas não arca com as altas despesas do tratamento das plantas. “Todo ano é uma incerteza. Têm variedades que não atingem o grau pedido pela vinícola, outra parte é comprometida pelo tempo, enfim, é uma série de fatores que acaba fazendo a gente desistir. Sobra pouco de lucro”, comenta ele. Embora tenha “alugado as parreiras”, Somensi segue ajudando na poda e no tratamento. “É difícil a gente ficar longe de uma rotina que nos acompanhou a vida inteira”, confessa Somensi, enquanto efetuava a poda sob chuva.
Outro agricultor, desta vez da linha Eulália, que não quis ser identificado por acreditar que será repreendido pelos filhos, admite que não continuará a produção a partir do ano que vem. Está descontente e cansado de trabalhar sem ver o retorno. “Paguei a faculdade de todos meus filhos com o lucro que consegui com muito suor embaixo das videiras. Hoje, são eles que têm que me ajudar. Não temos mais motivação para continuar”, afirma. “Algumas cantinas não estão mais nem recebendo nossa uva. Muitas estão investindo em produção própria em outras cidades e até em outros Estados. Nosso futuro é viver com o dinheiro da aposentadoria, que também é uma ‘merreca’”, completou o vizinho do agricultor, que acompanhava a conversa.
Embora muitos estejam descontentes, tantos outros mantêm a esperança. Roberto Baldissareli, que colhe mais de 210 mil quilos da uva no Vale dos Vinhedos, mantém a rotina desta época do ano, que é de poda. “Sei de muita gente, principalmente em áreas próximas a Monte Belo do Sul, que está descontente e abandonando as parreiras. Mas eu acredito e tenho fé que as coisas vão melhorar. Nós estamos contentes com nossa produção e devemos seguir nesse caminho até o final da vida, se Deus quiser”, projeta o agricultor.
Falta de frio
De acordo com Neiton Perufo, técnico agrícola da Emater Bento Gonçalves, neste ano houve uma queda grande da variação de temperatura. Embora não seja oficial, o profissional acredita que 2014 teve, pelo menos, 100 horas a menos de frio, o que pode interferir na produção de uva. “Isso prejudica a dormência da planta e reflete na época da brotação, que pode crescer desuniforme e até falhar. Algumas vinhas podem não brotar”, alerta.
Nas áreas próximas aos rios, a poda já está concluída. Nas partes mais altas, o processo deve encerrar no final do mês. “A condição climática é igual para todas as áreas. Estamos acompanhando para que os agricultores não tenham prejuízos, afinal, sabemos que o resultado da colheita reflete na renda das famílias”, garante.
Área plantada tem redução de 6,5%
O abandono da produção de uva tem refletido no Cadastro Vitícola, elaborado pelo Instituto Brasileiro do Vinho (Ibravin) e pela Embrapa Uva e Vinho, que apontou uma redução de 6,5% na área de vinhedos em Bento Gonçalves: de 6.627 hectares para 6.194 na comparação entre 2012 e 2011. A queda, ainda que mais sutil, também é constatada já a partir de 2010, quando uma sequência de crescimento de quatro anos consecutivos foi interrompida. O estudo destaca ainda a manutenção do número médio de propriedades em que há o cultivo da uva, que permanece na média de 1,8 mil.
Em matéria publicada em abril deste ano pelo SERRANOSSA, o presidente do Conselho Deliberativo do Ibravin, Moacir Mazzarollo, explicou que um dos fatores que podem ter influenciado na variação é a precisão possibilitada pelo uso de georreferenciamento, adotado de forma parcial nos vinhedos locais na última safra. Contudo, na avaliação dele, outro aspecto é ainda mais preocupante no que se refere à extinção de áreas vitícolas: a dificuldade para encontrar mão de obra, tanto familiar como de terceiros. O problema se agrava em época de safra, quando a demanda é muito grande para um curto espaço de tempo. “A colheita talvez seja hoje o principal motivo de abandono dos parreirais por parte do produtor. Por enquanto, pode não ser algo ainda tão grave, mas com certeza já nos preocupa”, afirmou na época.
Área de vinhedos*
2002: 5.101,48 hectares
2003: 5.263,69 hectares
2004: 5.668,21 hectares
2005: 5.741,80 hectares
2006: 5.740,55 hectares
2007: 5.920,36 hectares
2008: 6.268,48 hectares
2009: 6.561,44 hectares
2010: 6.653,92 hectares
2011: 6.627,66 hectares
2012: 6.194,24 hectares
*Números relativos a Bento Gonçalves.
Fonte: Cadastro Vitícola
Reportagem: Raquel Konrad
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