Juíza defende ressocialização de apenados e incentiva empresas a oferecerem oportunidades de emprego

Com quase 20 anos de atuação em Bento Gonçalves, a juíza Fernanda Ghiringhelli de Azevedo, que jurisdiciona a 1ª Vara Criminal e Vara de Execuções Criminais no município, esteve na redação do SERRANOSSA para falar sobre as demandas da área criminal na cidade, as mudanças impostas pela pandemia e também sobre a relação do Judiciário com a comunidade.
A juíza é natural de Porto Alegre e já atuou em Lagoa Vermelha, Palmeira das Missões e Bento Gonçalves, onde está desde 2002. Até 2010, Fernanda esteve à frente da única Vara Criminal, Vara de Execuções Criminais e Juizado da Infância e Juventude e, a partir de 2010, quando foi instalada a 2ª Vara Criminal, passou a atuar na 1ª Vara Criminal (que compreende os processos de júri) e Vara de Execuções Criminais.

A entrevista completa, em vídeo, pode ser conferida na fanpage do SERRANOSSA. Acompanhe os principais trechos.


 

SERRANOSSA: Como são divididos os processos entre a 1ª a 2ª Vara Criminal? 
Fernanda Ghiringhelli de Azevedo:
Tanto a 1ª quanto a 2ª Vara Criminal têm competência para crimes punidos com detenção (crimes mais leves) e reclusão (crimes mais graves). Porém, a 1ª Vara Criminal também tem a competência para processos do Júri, relativos a crimes contra a vida, e, junto, temos a Vara de Execuções Criminais, que fiscaliza o cumprimento de penas das pessoas já condenadas. A 2ª Vara Criminal tem competência para os processos da infância e juventude e também para os processos de violência doméstica, que são os crimes da Lei Maria da Penha. 

SN: E qual a demanda de processos destas varas?
Fernanda:
Atualmente, na 1ª Vara, temos cerca de 1.800 processos criminais e  400 processos de execução criminal. Desde que foi instalada a Vara Regional de Execuções Criminais em Caxias do Sul, as penas de prisão não são mais competência da Vara de Bento, que permaneceu com a fiscalização das penas restritivas de direito, que são as penas alternativas, como a prestação de serviços à comunidade, pena pecuniária, multa, limitação de fim de semana. Também possui  competência para fiscalizar o cumprimento do livramento condicional, que é a última etapa de cumprimento da pena de prisão, depois que o apenado passou pelos regimes fechado, semiaberto e aberto, e só terá que cumprir algumas condições.

SN: Quais são os crimes mais comuns aqui na região?
Fernanda:
Sem dúvida, o tráfico de drogas, que tem crescido assustadoramente nos últimos anos. Por outro lado, tenho percebido uma redução do número de crimes contra o patrimônio. Eu participo de reuniões do RS Seguro, do qual fazem parte os 23 municípios que mais registraram homicídios, considerados, assim, os mais violentos.  Desde 2018, Bento Gonçalves teve um aumento muito grande de homicídios, a maioria deles vinculados ao tráfico de drogas, à disputa entre facções. Em razão disso, Bento foi incluído nesse programa. Mensalmente, temos reunião com todos os municípios do programa, além da reunião local, nas quais são discutidas ações para a diminuição destes índices, de forma integrada e em conjunto com os órgãos da segurança. Nos relatórios que recebemos, percebemos que houve uma diminuição dos crimes contra o patrimônio, como roubos, furtos. E não se pode atribuir isso à pandemia, porque essa redução não se observa em todos os municípios. É um trabalho conjunto das forças de segurança que permitiu essa redução.

SN: Sabemos que os júris foram bastante comprometidos por conta da pandemia. Como está essa situação agora?

Fernanda: Os processos de júri são de crimes intencionais contra a vida. Homicídios culposos, por exemplo, acidente de trânsito em que houve morte por culpa do motorista, não vão a júri. Os delitos da competência do júri são: homicídio ou tentativa de homicídio, induzimento ou auxílio ao suicídio, aborto, infanticídio e feminicídio. Nestas hipóteses, o processo é diferente porque, depois que forem produzidas as provas, vai haver um julgamento por sete jurados, e não por um juiz. A sessão do júri demanda toda uma preparação. São convocados 25 jurados e, no dia da sessão, são sorteados sete para participar do conselho de sentença. E isso é trabalhoso. Atualmente, não há legislação que permita realizar um júri de forma virtual. Assim, durante a pandemia, por determinação do Tribunal de Justiça, estão sendo realizados somente os júris urgentes, aqueles em que o réu só está preso por aquele processo, é um preso provisório que está aguardando aquele júri. Em Bento, a partir do início da pandemia, eu fiz dois júris de réus presos, não havendo, no momento, outros processos de réus presos prontos para júri. Naqueles júris, convocamos mais jurados, porque poderia haver mais pedidos de dispensa, por conta de comorbidades, e, para evitar expor os jurados a riscos desnecessários, não convocamos os com mais de 60 anos. Nós fizemos o sorteio dos sete jurados na rua, para que se evitasse aglomeração, e apenas os sete sorteados entraram no Fórum. Também não foi permitida a presença de plateia, então, os jurados foram acomodados com distanciamento neste espaço. Com todas estas cautelas e o fornecimento dos equipamentos de proteção, conseguimos realizar esses júris.

SN: As prisões preventivas também foram comprometidas na pandemia e isso gerou críticas em parte da sociedade, que diz que a polícia prende, mas a Justiça solta. Qual é a orientação oficial quanto a isso?

Fernanda: A prisão provisória, ou seja, realizada antes da condenação, sempre foi e sempre será excepcional. Com a pandemia, ela se tornou mais excepcional ainda, inclusive por recomendação do Conselho Nacional de Justiça, porque os presídios são ambientes de confinamento, em que, obviamente, a disseminação de um vírus sempre vai ocorrer de forma mais rápida, principalmente em presídios superlotados, que são maioria, infelizmente. O que a sociedade precisa entender é que o papel da polícia é um e o papel do Poder Judiciário é outro, e eles não se confundem. O Judiciário não é um órgão da segurança pública, assim como o Ministério Público não é. Para que uma pessoa fique presa durante o processo, antes de uma condenação definitiva, é preciso respeitar alguns requisitos e, se não eles estão presentes, mesmo que não haja dúvidas de que aquela pessoa seja a autora do crime, ela não pode responder ao processo presa, porque não existe pena antecipada. É preciso que se aguarde o trâmite do processo, e isso não significa impunidade. Impunidade seria se o suspeito não respondesse ao processo ou não se submetesse, em caso de condenação, a uma pena. Mas a sociedade é muito imediatista, quer respostas rápidas. Porém, nem sempre a resposta imediata é a resposta justa. Muitas vezes, na pressa de solucionar um delito, acaba-se não seguindo todas as linhas de investigação possíveis, por exemplo. Quanto mais provas a polícia produzir durante a investigação e levar ao Judiciário, melhor e mais justa será a decisão final. A prova pericial, que é muito importante, infelizmente, é pouco usada no Brasil, e quantas injustiças se comete, quantas pessoas são presas injustamente, por não haver estas perícias adequadas! Portanto, quanto mais provas de qualidade produzidas durante o inquérito, mais condições haverá para um julgamento justo. 

SN: No ano passado, durante a construção do complexo hospitalar, alguns apenados de regime aberto, participaram como voluntários na obra. Isso mostra que é possível uma ressocialização. Ao mesmo tempo, a gente também vê um discurso na sociedade que “bandido bom é bandido morto”. A senhora, que acompanha de perto, que julga, acredita nesta reintegração dos presos na sociedade? 

Fernanda: Com certeza, é possível. Eu acredito muito na ressocialização da maioria dos presos. Há pessoas que erram, se arrependem, cumprem sua pena, voltam para sociedade e nunca mais se envolvem em nada ilícito. Isso não é raro, não é exceção. Porém, a sociedade precisa se engajar,  oferecendo oportunidades, no mercado de trabalho, para nossos apenados: os que estão usando tornozeleira eletrônica, os que estão em prisão domiciliar com autorização para serviço externo, os que estão em livramento condicional e os egressos (que já cumpriram sua pena e estão livres). Eles precisam destas oportunidades. Se a sociedade fechar as portas para estas pessoas, como vai esperar que elas se reintegrem e saiam da criminalidade? É algo que não faz sentido. Temos vários exemplos positivos de apenados egressos que receberam um voto de confiança dos empregadores e são excelentes funcionários. Então, eu conclamo as empresas para que entrem em contato com a administração da nossa Penitenciária, a fim de se informar sobre convênios com a SUSEPE relativos à mão-de-obra prisional, que, inclusive, traz incentivos e vantagens para o empregador.

SN: E também tem aqueles que precisam prestar serviço comunitário e que necessitam de oportunidades da sociedade, né?

Fernanda: Exatamente. São os condenados a penas restritivas de direito e não a prisão, pois praticaram delitos mais leves e não são reincidentes. Por exemplo, embriaguez ao volante, que gera o maior número de prisões em flagrante, e, normalmente, é cometido por pessoas com plenas condições de trabalhar, fazendo-se útil para a comunidade, em órgãos públicos, escolas ou entidades beneficentes. Nós precisamos de vagas para esses reeducandos, que vão trabalhar de graça, de acordo com suas habilidades. Já tivemos, inclusive, médicos atendendo pacientes gratuitamente, como forma de cumprir pena de prestação de serviços à comunidade. A contrapartida da entidade ou órgão que receber o prestador de serviços é informar à Vara de Execuções Criminais, mensalmente, as horas trabalhadas. Para fazer o convênio, os órgãos interessados devem entrar em contato com a Assistente Social Judiciária ou com a Vara de Execuções Criminais.

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