KM2: uma localidade esquecida

Uma rua de aproximadamente dois quilômetros de extensão, com cerca de 20 casas distribuídas uma ao lado da outra e 60 moradores vivendo em busca de um mesmo ideal: dignidade. É assim que se pode definir o KM2, localidade conhecida por abrigar antigas casas dos militares do Batalhão Ferroviário e que hoje possui inquilinos oriundos de diversos bairros de Bento Gonçalves e também de outras cidades. 

O silêncio reflete a tranquilidade da comunidade, mas a beleza das paisagens do Rio das Antas e da clássica Ferradura, que todos os moradores podem observar diariamente, contrastam com as precárias condições em que os moradores vivem. O SERRANOSSA conversou com diferentes famílias, ouviu histórias surpreendentes e também os pedidos, quase que suplícios, para uma melhor qualidade de vida.


Doações insuficientes

Embora alguns voluntários lutem para proporcionar uma vida melhor para os moradores – como é o caso do pastor evangélico Alfeu Siqueira Ferreira, da Igreja Água Viva, que leva roupas e comida para a comunidade pelo menos uma vez por semana –, nem todos são beneficiados. As doações não suprem as necessidades das 20 famílias que residem no KM2. “Levamos umas três ou quatro sacolas que conseguimos arrecadar e deixamos em um ponto de distribuição, que é a nossa pequena capela. Os moradores podem ir lá e se dividirem, mas sabemos que não conseguimos atender toda a demanda”, lamenta o religioso.

Quem recebe as doações é Sandra Maria de Borba, de 42 anos, que distribui para as famílias que precisam. Ela também tem a incumbência de todos os sábados realizar um sopão. Cada morador pode ir até lá e pegar uma quantidade limitada para a família. Por causa desse trabalho, ela está fazendo um “puxadinho” em sua velha casa de madeira, onde irá construir, com material doado, uma cozinha nova. 

De acordo com o Pastor Alfeu, a comunidade também é incentivada a produzir sua própria alimentação. “Até pouco tempo, tínhamos uma horta comunitária. Queremos retomar ainda neste ano. Mas a maioria das famílias mantém plantação de mandioca, feijão e ainda criam galinhas e porcos. É uma forma de reduzir os custos”, revela.


Cinco crianças, marido doente e desempregada

Ao chegar na casa de Jurema Alves da Silva, de 36 anos, a primeira cena que se vê são cinco crianças, de pés descalços, correndo atrás de uma bola meio murcha e tão suja quanto seus pequenos chutadores. A alegria nos olhos dos pequenos ao ver uma pessoa diferente na comunidade não é a mesma da dona da casa, que vive um drama diariamente. Mãe de dois filhos, uma adolescente e outro de nove anos, ela ainda tem nas mãos a incumbência de cuidar de mais quatro crianças: um filho de seu irmão e outras três filhas de uma irmã, que está presa no Paraná há seis anos. Ela passou a cuidar de todos os sobrinhos como se fosse mãe deles desde que a matriarca da família faleceu, há dois meses.

Como se não bastasse tudo isso, ela ainda tem que cuidar do marido, portador de Lupus, uma doença que afeta a pele, os rins, as articulações e o cérebro, entre outros órgãos.  Desempregada, ela revela a vontade de buscar uma ocupação. Mas com quem irá deixar as crianças? E quem irá auxiliar o seu companheiro nas necessidades impostas pela doença? 

Essas perguntas são constantes em muitas famílias do KM2. A comunidade não tem uma área de lazer, nem escola, nem parque, tampouco estrutura para receber tanta gente. Para frequentarem as aulas, as crianças acordam às 5h pois a única van disponível passa pelo local às 6h15 e retorna ao meio-dia. A outra linha que passa pela comunidade, às 19h, para na RSC-470, cerca de dois quilômetros distante das casas. “Como subir caminhando dois quilômetros, à noite, em meio ao mato, e descer com cinco crianças? Além de perigoso, é desgastante”, revela Jurema. 

A situação piora em dias de frio e chuva. A lama se acumula pela rua e as crianças, muitas vezes, não podem ir à escola, pois o único uniforme do qual dispõem fica sujo e embarrado. “Não tenho um tênis para cada um e nem tenho como comprar dois uniformes para eles. O jeito é deixá-los em casa, porque, embora a gente seja pobre, não admito que as crianças saiam de casa sem estarem limpas”, garante.

Esgoto despachado atrás de casa

Maria de Fátima Machado, 35 anos, está esperando seu terceiro filho. A gravidez é de alto risco, em função do Diabetes. Ela é mãe de uma adolescente de 19 anos, que já tem uma filha, e de um menino de 15 anos. O sustento de todos vem do marido, que trabalha em uma metalúrgica na cidade e recebe cerca de R$ 900 por mês. 

Maria deveria receber aplicações de insulina três vezes por semana, mas isso não acontece. Para se deslocar até a cidade, ela depende de transporte. “Como o ônibus só passa às 6h15 aqui na comunidade e na volta deixa a gente na faixa [RSC-470], não posso caminhar tanto. Sinto muito desconforto por causa da gravidez. Além de ser escuro e longe, ainda corro o risco de levar um tombo com as pedras soltas e a estrada daquele jeito”, lamenta. As péssimas condições da via foram constatadas pela reportagem do SERRANOSSA.

Outro problema apontado pela moradora é a falta de saneamento básico. Cada morador cavou uma cratera atrás da casa para o escoamento do esgoto doméstico. “Toda vez que o buraco enche, temos que abrir outro. Vai chegar um dia que não teremos mais onde colocar”, alerta. Além de perigoso – os orifícios são tampados com pedaços de madeira e crianças circulam o tempo todo pelas proximidades –, em dias de chuva o cheiro se torna insuportável. 

Embora o movimento não seja intenso, cada carro que passa na rua levanta poeira em dias de sol ou joga barro por toda a casa quando chove. “A prefeitura não coloca brita há uns dois anos. Semana passada eles estiveram aqui roçando. Ainda bem, porque estávamos vivendo quase no meio do mato”, conta.

O que diz a prefeitura

O subprefeito de Tuiuty, Dirceu Pedrotti, contesta algumas informações passadas pelos moradores. “Estamos fazendo o possível”, afirma. Segundo ele, a comunidade não está esquecida e, frequentemente, obras estão sendo realizadas no local. Uma delas foi a roçada do mato, ocorrida na última semana. A estrutura das estradas também não é um problema para ele. “As estradas estão em boas condições, apesar de que, quando chove, no outro dia sempre temos que ir lá dar um jeito”, confessa.

Pedrotti ainda afirma que grande parte dos moradores são invasores, já que as terras pertencem à América Latina Logística (ALL), empresa que possui a concessão da Rede Ferroviária Federal. “A qualquer momento eles podem encaminhar uma ordem de desocupação”, alerta. O subprefeito também lembra que há três anos foi instalada uma rede de água da Corsan, mas que muitos moradores não têm acesso porque não querem pagar. Para julho, está programada uma extensão da rede até o Passo Velho, nas proximidades da Comunidade Terapêutica. O esgoto também é um problema. “Até levamos máquinas para abrir valas para o escoamento do esgoto, mas não podemos fazer mais nada além disso”, afirma.

Sobre o transporte, Pedrotti afirmou que os moradores do KM2 nunca oficializaram a reclamação para a subprefeitura e que o ônibus só desce de manhã, pois não existe demanda em outros horários. “Os motoristas me falam que a maioria das vezes tem um ou dois moradores de lá que utilizam o transporte. Podemos conversar com a empresa e ver a possibilidade de ampliar os horários, mas acredito que seja inviável em função da baixa procura”, revela.

Um desmoronamento da estrada logo na entrada da comunidade, apontado por Almeide Trevizan, que mora no local desde 1964, e que atuou como militar no Batalhão Ferroviário, também é de conhecimento de Pedrotti.  “Sabemos do problema e vamos providenciar uma parede de contenção para evitar novas quedas de terra. Estamos fazendo o possível para dar condições a essa comunidade”, garante.

Reportagem: Raquel Konrad


É proibida a reprodução, total ou parcial, do texto e de todo o conteúdo sem autorização expressa do Grupo SERRANOSSA.

Siga o SERRANOSSA!

Twitter: @SERRANOSSA

Facebook: Grupo SERRANOSSA

O SERRANOSSA não se responsabiliza pelas opiniões expressadas nos comentários publicados no portal.