Luci Salvador: meio século dedicado a ensinar
“Oi, profe! Tudo bem com a senhora?!”, pergunta um homem, de trinta e poucos anos, para Luci Maria Salvador, enquanto ela chega em casa, pontualmente no horário agendado para a entrevista. “Isso acontece todos os dias. As pessoas me cumprimentam e me chamam de ‘profe’, mas não lembro de todo mundo”, confessa. Não é para menos: são quase 50 anos dedicados à arte de educar. Ela não tem ideia de quantos alunos ensinou, mas calcula que tenham sido “mil e tantos”.
O sorriso no rosto, o colorido das vestimentas e os acessórios inconfundíveis revelam o bom-humor de Luci, que, embora não esconda sua longa trajetória na educação, prefere omitir sua idade. “Você sabe como é, as pessoas ficam comentando. Eu não gosto”, argumenta. Apesar das fragilidades físicas impostas pela idade, Luci mantém a voz firme, as recordações mais antigas surgem na memória como se tivessem acontecido ontem e o talento para ensinar continua intacto. Mesmo após se aposentar, ela segue lecionando semanalmente. “Acho que só vou parar quando não estiver mais aqui”, diz a professora, que atualmente dá aulas de história para turmas do Ensino Médio do Instituto Estadual de Educação Cecilia Meireles, nos turnos da manhã e noite.
Ensinar nos tempos atuais se tornou uma tarefa mais difícil para Luci. “Antigamente, as crianças já vinham de casa com uma educação exemplar. Nós, professores, éramos modelos a serem seguidos. Hoje, lutamos por um mínimo de respeito”, assume. Apesar das dificuldades, ela vê com orgulho o sucesso que muitos de seus alunos conquistaram. “O prefeito Guilherme Pasin, o ex-presidente do CIC (Centro de Indústria, Comércio e Serviços de Bento Gonçalves), Jordano Zanesco, o presidente Câmara de Vereadores, Valdecir Rubbo, entre outros líderes e empresários, foram meus alunos. Ver os esforços deles na luta pelas demandas da cidade e da região me enche de orgulho”, confessa, afirmando que hoje educa muitos filhos de seus ex-alunos.
Em casa
A casa onde Luci reside, conservada desde que chegou a Bento Gonçalves, aos cinco anos de idade, revela um pouco de sua história. Nas paredes, fotos antigas da família; pela casa, raros objetos de decoração, como vasos e louças de porcelana; e uma estante com mais de 20 troféus. “Já fui homenageada em outras cidades, como Porto Alegre e Torres. Esse espaço é muito especial para mim”, aponta Luci. O mais recente reconhecimento ocorreu no último mês de setembro, quando a professora foi homenageada com o Troféu Destaques 2013, prêmio promovido pela jornalista Rita Husek.
A casa também remete a bons momentos de tranquilidade, quando a rua 13 de Maio, uma das principais da cidade, não era marcada por congestionamentos, dificuldades de travessia e insegurança. “Havia poucas casas aqui e todos se conheciam”, garante Luci, que estudou no Colégio Medianeira do Jardim (hoje Educação Infantil) até o Curso Normal (ou Magistério). “Minha alegria era quando chovia. Como naquela época as ruas não eram asfaltadas, muita água se acumulava na sarjeta e eu fazia questão de correr por ali. A água era muito limpa. Se eu fechar os olhos, ainda consigo sentir aquela sensação maravilhosa”, emociona-se. “Hoje, com tanta poluição, fazer isso certamente ocasionaria uma doença”, lamenta Luci.
A arquitetura da casa foi mantida, mas ganhou adaptações modernas. Não por causa da estética – Luci nem se preocupa com isso –, mas para garantir sua segurança. A porta principal da residência ganhou uma grade com cadeado depois que a professora foi surpreendida por um ladrão dentro de casa. “Cheguei da missa, abri a porta e vi tudo revirado. Ouvi barulhos no quarto dos fundos e fui até lá. Vi um homem enchendo uma sacola com objetos. Saí correndo em busca de socorro”, relata. O ladrão fugiu sem objetos de grande valor, mas deixou um rastro de medo e insegurança.
Lembranças marcantes
Caçula e única mulher entre quatros irmãos, Luci conta que sempre foi a protegida da família. Ela é natural de Monte Belo do Sul, cidade que, segundo a professora, é muito bem cantada pelo Grupo Ragazzi Dei Monti, que tem como participantes os primos dela, Álvaro e Mara Manzoni, e onde seus avós, oriundos da Itália, eram donos de dois hotéis.
Luci sempre se considerou independente e aventureira. Assim que se formou no colégio Normal, resolveu viajar, atitude considerada imprópria para uma garota naquela época. “Meus pais sempre me apoiaram em tudo. Por causa disso, resolvi realizar esse desejo. Conheci diversos países da América do Sul, como a Argentina, Uruguai e Paraguai”, relata. Mais tarde, ainda teve a oportunidade de viajar a Cuba, acompanhada, na época, pela secretária de Educação do Rio Grande do Sul, Neuza Canabarro, esposa do governador do Estado, Alceu Collares, para um simpósio de educação. Outra viagem marcante foi para Roma, onde participou da beatificação do fundador da Congregação das Irmãs de São Carlos Borromeu. Na ocasião, também conheceu a Espanha.
Sua vida só ganhou outros rumos quando uma tragédia abalou sua família. Seu irmão mais velho morreu e deixou um bebê com apenas um ano de idade. “O menino foi deixado pela mãe na casa dos meus pais. Quando eu vi, estava cuidando de uma criança. Foi um período muito difícil”, revela Luci, com os olhos marejados de emoção. O menino Fabiano, hoje com 36 anos, se tornou seu filho de coração. “Ele era um menino muito levado. Mas, com a ajuda dos meus pais, consegui ser uma boa mãe”, comenta Luci. Fabiano é psicólogo em São Paulo e conversa semanalmente com ela por telefone.
Solteira convicta, Luci conta que nunca quis casar pois sempre priorizou os estudos, que não gosta de serviços domésticos e não sabe cozinhar. “Eu gostava mesmo de trabalhar e viajar. Nunca fui uma boa dona de casa”, confessa, afirmando que tem uma fiel auxiliar que a ajuda nas tarefas diárias. Luci gostava tanto de trabalhar que nas férias escolares, quando ficava de dois a três meses sem lecionar, atuava como balconista temporária em lojas como o Bazar BG e a Ferragens Planalto. “Eles precisavam de gente para trabalhar nos períodos festivos, como Natal e Ano Novo, em dezembro, e para substituir funcionários que estavam em período de férias no verão. E eu adorava”, conta Luci.
A professora descreve que, quando jovem, também frequentava bailes, principalmente no Clube Aliança. “Eram momentos incríveis. Nosso grupo de amigos se encontrava no baile e depois voltávamos a pé para casa, com tranquilidade e segurança”, revela. Sua presença ativa na sociedade também fez com que ela participasse da diretoria do “aristocrático” por vários anos. Luci também é voluntária há mais de 15 anos da Liga de Combate ao Câncer de Bento.
Lembranças marcantes, momentos inesquecíveis e saudades são sentimentos e emoções que permeiam a vida da eterna professora Luci Maria Salvador. Ela, que procura ensinar o que aprendeu com a vida, recebe diariamente – seja através de um “oi, profe”, de um abraço de agradecimento ou ao receber mais um troféu que será visto todos os dias por ela em sua estante preferida – o reconhecimento por ter contribuído para a formação intelectual e de vida de tanta gente.
Reportagem: Raquel Konrad
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