Mais independentes financeiramente, mas ainda à mercê de cultura machista

Com muito esforço e competência, as mulheres conquistaram seu espaço na sociedade e, atualmente, assumem cargos de grande relevância nos mais diversos setores. Entretanto, mesmo com mais independência financeira, a cultura machista e patriarcal continua vitimando mulheres em todo o Brasil. Em Bento Gonçalves, o cenário se repete. “O machismo cultural é ainda muito presente. As mulheres sofrem desigualdade de direitos, principalmente em questão de salários. E temos mulheres que sofrem duas vezes preconceito, primeiro por ser mulher e, ainda, por ser de outra etnia ou ter uma orientação sexual diferente, por exemplo”, analisa a coordenadora do Centro Revivi e da Coordenadoria da Mulher, Patrícia Da Rold.

Mais do que preconceito social, o machismo cultural é considerado a causa do alto índice de casos de violência doméstica no Brasil e, especialmente, na região da Serra Gaúcha. Somente nos dois primeiros meses deste ano, 90 pedidos de medidas protetivas foram registrados em Bento Gonçalves, de acordo com dados do Centro Revivi e da Coordenadoria da Mulher – em todo o segundo semestre do ano passado foram 200. O número de atendimentos também subiu no ano passado, com média de 120 por mês ou quatro por dia (aumento de 3,1% em relação a 2019).


Sala de atendimento à mulher no Centro Revivi. Foto: Divulgação/Revivi
 

“O machismo existe em todo o Brasil, mas por sermos de cidades menores, sempre é mais fácil que o machismo perpetue”, acredita Patrícia. “Nossa região é bastante machista, patriarcal, que vê as mulheres quase como aquela propriedade de terra que herdou do pai. Muitas vezes é o homem que decide se os filhos estudam, se compram um carro, se a mulher sai de saia curta”, complementa a delegada da Delegacia Especializada em Atendimento à Mulher (DEAM), Deise Salton Brancher Ruschel. Na opinião da delegada, há uma repetição de padrões que ainda não foi quebrada, com jovens e adolescentes refletindo comportamentos que presenciaram durante sua infância e/ou adolescência. 

Em relação às ocorrências policiais, a baixa no número de registros deve ser motivo de preocupação, alerta a delegada Deise. Anualmente, Bento tem cerca de 1.500 ocorrências de violência doméstica e/ou familiar, o que é visto como um ponto positivo pela delegada. No ano passado, entretanto, foram cerca de 700 ocorrências. “São mulheres que se encorajaram a denunciar. Fico preocupada agora na pandemia, que o número despencou. Porque a gente sabe que uma sociedade não muda uma cultura do dia para a noite. Isso é fruto de mais medo, com o maior convívio com o agressor, de falta de emprego e medo de não conseguir sustentar os filhos. É fruto de mais violência”, analisa.

Além disso, a delegada afirma que o aumento de atendimentos no Revivi e a baixa nas ocorrências pode ser explicada pelo tipo de crime praticado pelo agressor. “Nem todos os crimes precisam ser comunicados à polícia, apenas se a vítima quiser. Ocorrências como estupro, lesão corporal ou tentativa de feminicídio, precisam ser investigados. Mas muitas vezes a violência que algumas mulheres sofrem é tão velada, tão psicológica, que não consigo enquadrar como uma ameaça, ou perturbação, por exemplo. Porque no crime eu preciso ter uma perfeita adequação da conduta ao que diz a lei”, esclarece a delegada.


Delegada da Delegacia Especializada em Atendimento à Mulher (DEAM), Deise Salton Brancher Ruschel. Foto: Eduarda Bucco
 

Pandemia e aumento da violência

O convívio mais frequente com o agressor diante da pandemia continua impactando no aumento de casos de violência. Como ressaltado pela delegada, muitas mulheres acabaram perdendo o emprego ou tendo salários reduzidos, o que aumentou a insegurança em relação à questão financeira da família. “Apesar das mulheres terem conquistado o direito de trabalhar, muitas ocupando grandes cargos e não dependendo financeiramente dos companheiros, muitas chegam em casa e continuam tendo todos os afazeres domésticos. Tem ainda a questão dos filhos com o ensino remoto, então é uma rotina muito desgastante”, exemplifica a coordenadora do Revivi, Patrícia Da Rold. “Isso gera momentos de tensão, quando acabam acontecendo as primeiras discussões. Quando começam as palavras ofensivas, a violência moral e psicológica que vai evoluindo”, comenta. 

Com isso, muitas mulheres encontram ainda mais dificuldade para quebrar o ciclo de agressão. “Tem mulheres que chegam aqui [no Revivi] após sair de casa e continuam sofrendo porque têm amor pelo agressor, então também precisamos trabalhar isso. Como também há muitas que procuram a gente sem ter feito boletim de ocorrência, para se preparar porque querem sair do relacionamento, mas ainda não encontraram força para isso”, explica Patrícia. 


Coordenadora do Centro Revivi e da Coordenadoria da Mulher, Patrícia Da Rold. Foto: Arquivo pessoal

Dessa forma, a delegada Deise analisa que está se constatando mulheres mais corajosas, independentes financeiramente, mas que ainda têm um laço sentimental com os agressores, os quais continuam com falas e ações machistas.  “Numa regra geral, a grande verdade é que muitas mulheres sustentam os seus lares e o grande problema é a independência emocional e não financeira”, reforça. 

O secretário de Esportes e Desenvolvimento Social, Eduardo Virissimo, também vê na mulher bento-gonçalvense persistência, coragem e potencial. “A mulher hoje tem seu espaço garantido nas lideranças, no mercado de trabalho, na sociedade em geral, acredito muito que a mulher está tomando conta destes espaços”, afirma. Mesmo assim, ele cita que há diversas mulheres sendo atendidas de alguma forma nos serviços sociais, reforçando a necessidade do Poder Público “ajudar e minimizar o papel que a mulher assumiu com o tempo”. “Hoje a mulher em várias situações é uma super-heroína, trabalha para sustentar a casa, cuida da casa, educa os filhos, faz todos os papéis que, por algum motivo, teve a perda de ajuda de seu companheiro. Por isso, temos e pensamos em novas políticas públicas que vão ajudar a mulher a vencer todos esses desafios”, afirma o secretário. 


Secretário de Esportes e Desenvolvimento Social (SEDES). Foto: SERRANOSSA
 

Além da questão pessoal de cada vítima, o processo de registro de ocorrências tem sido mais difícil para as mulheres. De um lado, a estrutura da Deam não oferece a segurança sanitária necessária às vítimas, que muitas vezes precisam aguardar em fila ao lado de fora porque a delegacia é pequena e pouco ventilada. Dessa forma, a principal orientação é que, se possível, as ocorrências sejam feitas on-line. “Em menos de 24h a ocorrência vai cair para a delegacia e será tratada como prioridade, no sentido de fazer contato com a vítima e solicitar se ela precisa de uma medida protetiva”, afirma a delegada Deise. Outra questão diz respeito à falta de oportunidade e ao receio do agressor.

Passando mais tempo com o homem, muitas acabam não encontrando um momento adequado e de privacidade para buscar ajudar, mas as profissionais destacam que tanto a Deam, quanto o Revivi estão abertos para atendê-las seja presencialmente, por telefone ou internet. “O importante é as mulheres terem essa coragem de procurar ajuda logo na primeira violência, seja moral psicológica, patrimonial ou física. No momento que ela percebe que esse companheiro está tendo atitudes que não deveria, já é o momento de pedir ajuda”, reafirma Patrícia. 

Dependência do estado

A delegada Deise ressalta que não há um perfil específico de vítimas ou agressores, porque há violência em lares de pessoas de todas as classes sociais, etnias e orientações sexuais. Entretanto, ela analisa que é possível diferenciar a forma como as vítimas de diferentes classes sociais lidam com a violência. “Mulheres com mais condições financeiras buscam resolver seus conflitos sem envolver polícia, até porque elas frequentam psicóloga e tem um bom advogado para a acompanhá-las. Então elas têm condições de sair mais facilmente daquele ciclo de violência doméstica ”, exemplifica. Por outro lado, a delegada pontua que mulheres de periferia, por exemplo, têm apenas o Estado para auxiliá-las durante todo o processo. “Por isso a importância de oferecer um serviço adequado e completo”, afirma.

Outra questão diz respeito às idades. Grande parte dos registros é feita por vítimas mais novas, inclusive por adolescentes. Na visão da delegada, o motivo é que mulheres mais velhas ainda têm medo ou dificuldade de procurarem ajuda. Em relação aos adolescentes, ela ressalta: “se temos uma adolescente, significa que há um homem também mais ou menos nessa faixa etária. E por que se comporta assim? Por que resolve conflitos familiares com violência e não diálogo? Porque viu esse mesmo comportamento dos pais quando criança”, reflete.

Qualidade do serviço

As mulheres vítimas de violência doméstica ou familiar podem procurar tanto a Delegacia da Mulher, quanto o Centro Revivi para buscar ajuda. Na delegacia, elas terão o primeiro contato com uma estagiária de Psicologia, que ajudará a entender a realidade da mulher e diagnosticar a ajuda necessária. Se for da vontade da mulher, ela poderá registrar um boletim de ocorrência para investigação do agressor e solicitar uma medida protetiva. Na sequência, ela receberá um ofício de encaminhamento ao Centro Revivi. 

No Centro Revivi – seja por encaminhamento da delegacia ou por indicação de conhecidos – a mulher é acolhida por uma equipe de apoio social e psicológico, que fará o acompanhamento constante dessa vítima. “Elas recebem orientação social, jurídica e atendimento com psicóloga, que é mantido pelo tempo que for necessário, até que se sintam bem, seguras e prontas para reagir a essa violência, de forma gratuita”, ressalta a coordenadora Patrícia Da Rold. Durante esse processo no Revivi, as mulheres com medidas protetivas ainda são acompanhadas pela Patrulha Maria da Penha, da Brigada Militar, que faz rondas constantes no entorno de suas residências.

“Nós contamos com um serviço de muita qualidade para nossa população. Nossa Deam está entre as cerca de 20 delegacias especializadas em atendimento à mulher no Estado”, afirma a delegada Deise, ressaltando, ainda, a importância da integração dos serviços de assistência social e de polícia. “Sem integração a gente não faz nada”, comenta.

Educação desde a base

Mais do que trabalhar com a ocorrência de violência, a assistência social do município, em conjunto com a delegacia da mulher colocam em prática estratégias de conscientização. “É necessária uma educação desde a base, com fortalecimento do trabalho psicossocial com a mulher e com o homem. Esses são os caminhos”, ressalta a delegada Deise. 

Antes da pandemia, o Grupo Reflexivo Despertar, da DEAM, realizava reuniões com agressores para provocar a reflexão acerca de seus comportamentos. “São acusados de violência doméstica e familiar, de crimes leves, sem antecedentes, normalmente são pessoas que estão na sua primeira ocorrência”, explica a delegada. As reuniões são realizadas juntamente com a OAB e uma profissional de Psicologia, mas precisaram ser interrompidos com a pandemia. “Buscamos dar informações, escutar e os acolher, não apenas trabalhar em cima da Lei Maria da Penha, mas refletir por que eles agiram daquela forma. O objetivo é refletir possibilidades de resolver conflitos familiares de outra forma, que não com a violência”, comenta. O intuito é que as reuniões sejam retomadas assim que os números da pandemia se estabilizarem, afirma a delegada. 

No Revivi, a ideia é promover diferentes campanhas de conscientização com os homens. “Eles têm que aprender com medo se não aprendem com a conscientização. Mas claro, nosso foco sempre é a conscientização, é acabar com esse machismo para que as mulheres não sofram”, reafirma a coordenadora Patrícia Da Rold.

A delegada Deise finaliza dizendo que o trabalho com as vítimas deve ser de encorajamento e regado de empatia. “Devemos nos colocar no lugar do outro e respeitar, ainda que não concordemos. Eu não concordo com muitas atitudes das vítimas que vêm até aqui, mas eu tenho um lugar no mundo e elas tem outro. Então nosso papel é encorajar essas mulheres, mostrar que elas têm a possibilidade de serem independentes, que merecem respeito, autoestima. Que elas podem e conseguem”, finaliza.