Malabarismo em troca de sorrisos
Um sorriso talvez seja a melhor maneira de encarar o dia. Vanderlei Quevedo, de 37 anos, ganha a vida levando doses de alegria aos motoristas nos poucos segundos em que o sinal vermelho contém o fluxo de veículos em uma esquina movimentada da cidade. Natural de Progresso (RS) e atualmente residindo em Garibaldi, há oito anos elegeu Bento Gonçalves como cenário para sua arte. O palco escolhido foi o cruzamento da rua Dr. Casagrande com a avenida Osvaldo Aranha, no bairro Cidade Alta, onde ele se apresenta fazendo malabarismos e interagindo com o público. “A arte de rua é o estado mais democrático de arte. Se eu escrevesse um livro, poderia não chegar a tantos leitores ou se subisse em um palco talvez não tivesse tanta gente para me ver. Quem passar cheio de dinheiro vai ver; quem passar sem dinheiro vai ver; o doutor vai passar e ver; o mendigo vai passar e ver”, resume.
Quem transita pelo local diariamente já se acostumou com a figura esguia de dreadlocks no cabelo e vestes lúdicas. Em poucos minutos, é possível constatar a sua popularidade: não é raro ouvir acenos e buzinadas dos motoristas que passam por ali enquanto o sinal está aberto. “O povo está familiarizado comigo, aqui estou em casa. Eu me dou bem com todo mundo das lojas em volta. Quando a gente trabalha com o intuito de passar alegria para o público e faz um serviço bem feito, conquista amizades”, comenta.
Ele se apresenta com os chamados “devil sticks” – paus do diabo, na tradução. É uma espécie de malabarismo que usa três bastões de madeira para fazer as manobras. Seu primeiro contato com eles foi nos anos 2000, quando era ativista político e participava de uma mobilização durante a greve de funcionários da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Uma estudante, que também estava no ato, deu a ele um destes bastões. “Comecei a jogar e não parei mais. Um belo dia, fui pra rua e vi que dava para ganhar uma grana, que tinha um jeito de interagir com o público”, lembra.
Ele já havia trabalhado com teatro de rua e declamando poesias – ambas dependiam da receptividade do público –, mas foi no malabarismo que encontrou um meio de se comunicar com todos. “Não tem como explicar a realização e a satisfação que eu encontrei. Eu me encontro com o que eu faço. Consegui minha liberdade e meus poucos e humildes bens através do que faço. Então, não tenho o que reclamar, só agradecer”, pondera. Sua ligação com a arte iniciou ainda criança, fazendo poesias. Um de seus poemas foi eternizado na pele e é declamado com auxílio dos quatro desenhos entrelaçados que estampam seu braço: um par de asas (liberdade), um coração (amor), um olho (percepção) e chamas de fogo (poder).
Quevedo não tem dia nem horário fixo de trabalho. “Às vezes eu trabalho três horas, às vezes eu trabalho dez, às vezes cinco. Dependendo da necessidade”, explica. Embora seja difícil calcular quanto ganha diariamente, ele garante que é suficiente para pagar as suas contas. “Eu já tenho coisas demais, que me dão trabalho demais, que me ocupam demais. Se eu tivesse metade do que eu tenho, já viveria bem. Eu me preocupo em ganhar dinheiro para gastar e para viver bem. O ser humano é adaptável. Se eu ganhasse o que eu ganho, se ganhasse a metade, o dobro ou dez vezes mais, eu sobreviveria”, pondera.
Sobre a generosidade dos motoristas, ele diz que é como em qualquer outro lugar. “Tem dias em que a pessoa está aberta à interação, tem dia que não. Tenho que entender que se todo mundo colaborasse hoje, quem iria colaborar amanhã?”, questiona. O valor arrecadado depende também do seu estado de espírito. “Como eu trabalho com alegria, quanto melhor eu estou, mais grana consigo. E às vezes, como todo o ser humano, você não está com aquele gás, com aquele pique todo”, destaca.
Viagens
Quevedo veio de uma família simples e que atualmente está em uma condição financeira bem estabilizada, mas garante que conquistou seus bens com o próprio esforço. Ele já se casou cinco vezes e atualmente mora sozinho em Garibaldi. Dos relacionamentos anteriores, teve dois filhos: uma menina que mora São Paulo e um menino que mora em Caxias do Sul. Antes de construir sua casa em Garibaldi – onde sua família já residia – ele passou cerca de uma década viajando pelo Brasil e pela América Latina. “Sempre tive muita curiosidade de conhecer novas culturas, de estar em novas paisagens, vivenciar novas experiências. Fui bem sucedido graças a Deus”, conta.
Com sua caminhonete Veraneio – sua “casa” quando está na estrada – percorreu todas as regiões brasileiras e alguns países, como Venezuela, Colômbia, Bolívia e Paraguai. O roteiro mesclava momentos de trabalho – sempre relacionado à sua arte – e lazer, especialmente cicloturismo. “Eu me dou bem fazendo o que eu faço em qualquer lugar. Onde não tem um semáforo, tem um barzinho cheio de gente. Eu também toco alguns instrumentos, então brincava um pouquinho”, relata.
Ciclismo
O deslocamento de Garibaldi até Bento, feito de bicicleta, é um aquecimento para os treinamentos de média distância que faz de três a quatro vezes por semana. Seus planos para o futuro incluem participar do campeonato gaúcho de ciclismo. A “magrela” comprada inicialmente como hobby, virou um vício. “A competição maior é comigo mesmo, superar os próprios imites. Independente de pódio, estar melhor hoje do que ontem e amanhã melhor do que hoje. Quem está no ciclismo, mesmo que não estiver indo para prova nenhuma, está competindo consigo. Mesmo se estiver atrás de todo mundo, está ganhando de quem está sentado no sofá”, analisa.
Histórias curiosas
Entre as histórias curiosas do seu dia a dia está uma envolvendo Marcelina Corrêa Pinto, a Keka – uma das figuras populares da cidade falecida neste ano, pouco mais de cinco meses após ser atropelada na BR-470. Ele conta que certo dia sua mochila – com o valor ganho no dia e pertences pessoais, incluindo as chaves de alguns automóveis antigos que possuía – desapareceu. Dias após, um funcionário do posto de combustível próximo ao sinal onde Quevedo se apresenta lhe disse que viu Keka com uma mochila parecida. Ao conversar com ela, descobriu o paradeiro dos seus pertences: durante mais de uma semana, ela havia guardado a mochila, trocando de esconderijo com frequência para que ninguém a roubasse. Todos os seus pertences estavam no interior. Como forma de recompensa, ele conta que lhe deu o dinheiro que estava na mochila – algo em torno de R$ 50.
Preconceito
Os anos em que ele trabalha na rua, lidando diretamente com o público, foram de intenso aprendizado e evolução. “Apurou minha dialética, meu senso crítico, meu raciocínio lógico, minha coordenação motora. Tudo evoluiu”, assegura.
Por conta do seu visual e por trabalhar nas ruas, o artista conta que sofreu preconceito no início, quando o público não estava familiarizado com ele. “O que é diferente causa estranhamento e sempre vai causar. No início eu era diferente. Hoje, se eu fico um tempo sem vir para cá as pessoas me encontram em outra cidade e perguntam “cadê você?”, conta. Com o tempo, ele aprendeu a não se deixar abalar com comentário negativo. “Quem é bem esclarecido tem que entender que aqueles que têm preconceito, seja de que tipo for, com o artista de rua ou com qualquer pessoa é que é o doente, que precisa de ajuda”, pontua.
Esta é a 16ª reportagem da Série “Vida de…”, uma das ações de comemoração aos 10 anos do SERRANOSSA e que tem
como objetivo contar histórias de pessoas comuns, mostrando suas alegrias, dificuldades, desafios e superações e, através de seus relatos, incentivar o respeito.