MP investiga adulterações em quilometragem
Comprar veículo usado ou seminovo é a saída para que muitas pessoas possam ter o seu carro, mas também pode virar uma grande dor de cabeça e até longas disputas judiciais. “Para mim, foi só prejuízo, tanto emocional, quanto financeiro”, resume a consultora de vendas e frentista, Jussára Toccolini, de 26 anos, que conseguiu provar na Justiça que a quilometragem original de seu veículo havia sido adulterada. A consumidora teve ganho de causa contra uma revenda de veículos multimarcas de Bento Gonçalves. O Ministério Público (MP) mantém um inquérito em aberto para investigar a fraude na cidade.
Tudo começou em dezembro de 2012, quando Jussára encontrou o carro que procurava em um site especializado em automóveis usados, que a direcionou. “Eu adquiri um Honda/Fit 1.4, ano 2004, nessa revenda. Eles me ofertaram o carro com 65 mil quilômetros. Eu achei atrativo porque o veículo estava, aparentemente, em boas condições”, relata. Mas, segundo a consumidora, os problemas começaram já no segundo dia de uso, quando o veículo apresentou pane. O carro também teve problemas para passar na vistoria do Departamento Estadual de Trânsito (Detran) no momento da transferência. “Eu não tive assistência do estabelecimento. Tive que trocar os pneus e o extintor, que estava vencido”, aponta.
Mas esse ainda não seria seu maior transtorno. Após levar o novo carro para as revisões programadas na concessionária autorizada da marca, Jussára foi surpreendida com a informação de que seu veículo já havia passado pela revisão solicitada com aquela quilometragem ainda no ano de 2011. “Foi aí que descobri que o carro já tinha pelo menos o dobro da quilometragem”, lamenta. Após o episódio, a consultora de vendas disse que procurou o lojista para desfazer o negócio. “Não teve jeito, ele não quis me devolver o dinheiro. Ele tentou ofertar outro veículo, mas a avaliação do carro antigo seria muito desvalorizado”, conta.
Tomada pela indignação, Jussára decidiu ir atrás de provas da fraude. “Tentei conseguir as provas das revisões, mas minha solicitação não foi atendida. Foi então que percebi que o carro não possuía manual, onde se registra todas as revisões. Por isso decidi ir atrás do Ministério Público. Lá, fizeram a solicitação destes documentos à concessionária, pedido que não foi atendido. O MP fez uma segunda solicitação, e essa sim foi atendida”, relata. De posse das informações verdadeiras, ela decidiu ingressar com uma ação anulatória da compra na Justiça e teve o dinheiro devolvido há algumas semanas.
Provas reunidas
Jussára conseguiu fazer contato com a antiga dona do veículo, que confirmou, em depoimento no processo, que havia entregue o carro com mais de 100 mil quilômetros à concessionária. “Ela também disse que o veículo havia sido batido várias vezes. Bem ao contrário do que o garagista me garantiu, que o carro estava ‘lacrado’”, frisa. A consumidora relatou à reportagem do SERRANOSSA que também fez contato com outras pessoas que já passaram pela mesma situação, mas elas não conseguiram juntar provas suficientes para entrar com processo contra os estabelecimentos.
Desilusão
“Hoje nem sei por onde começar na hora de comprar um veículo. Para ser sincera, não sei como vou agir na hora. Eu não confio mais nesses estabelecimentos”, diz Jussára. A consumidora lesada disse trabalhar mais de 12 horas por dia para poder pagar suas contas e se sente indignada com toda a situação. “Passei por problemas de saúde, porque fiquei muito nervosa com a situação toda. Foi um investimento muito alto. Eu trabalho em dois lugares, das 8h às 23h, para adquirir um bem e aí sou lesada dessa maneira e ainda fico de mãos atadas. Foram dois anos sem poder ir viajar com o carro, porque não poderia ter avarias, senão corria o risco de perder o processo. Eu me limitei muito nesse tempo e tive muitos prejuízos”, reclama. A consumidora lesada afirma que, além de do ressarcimento financeiro, quer que os consumidores se atentem e busquem seus direitos. “Muitas vezes somos vítimas e não sabemos como nos defender. Aconselho que as pessoas procurem seus direitos e lutem por eles, só assim garantiremos nosso respeito”, finaliza.
Promotoria espera por maisdenúncias de consumidores
O caso de adulteração de hodômetro de veículos está sendo investigado pelo Ministério Público (MP) de Bento Gonçalves. De acordo com o promotor Alécio Silveira Nogueira, algumas informações sobre práticas e procedimentos já foram solicitadas às concessionárias. Até o momento, apenas um caso desse tipo em Bento Gonçalves foi denunciado à promotoria, justamente o de Jussára. “Essa prática é de difícil comprovação, muitos são lesados e não sabem ou não têm como provar a adulteração”, diz Nogueira.
O promotor lembra que todos que tiverem problemas referentes à adulteração de quilometragem de veículos podem procurar o MP para fazer denúncias, que serão anexadas à investigação atual. “Se mais pessoas nos procurarem relatando esse tipo de problema, poderemos intensificar a investigação e de fato reconhecer que é algo que atinge a sociedade e merece mais atenção do Ministério Público”, completa Nogueira.
A adulteração de hodômetro configura crime de estelionato para quem faz a alteração, previsto no artigo 171 do Código Penal, e crime contra as relações de consumo para quem vende o veículo adulterado, como determinam os artigos 18 e 66 do Código de Defesa do Consumidor.Algumas precauções básicas também podem ser tomadas pelos lojistas para evitar surpresas ao repassar carros usados. A principal delas é solicitar uma declaração assinada pelo antigo proprietário do automóvel, garantindo a veracidade da quilometragem marcada no painel.
“Eles só querem ver onúmero que está no painel”
Muitos consumidores não sabem, mas podem estar comprando veículo velho por novo, e, como diz o ditado, “levando gato por lebre”. Casos como o de Jussára Toccolini não são incomuns em Bento Gonçalves – o grande problema é comprovar a fraude. Mesmo assim, em muitas situações, é o próprio desejo do comprador de ter um carro com quilometragem reduzida que motiva a prática ilegal.
Para o sócio-proprietário da Delauto Veículos, Aurélio Machado, é muito mais importante que o consumidor fique atento a outras informações do carro, e não esteja preocupado apenas com a quilometragem rodada. “Na maioria das vezes, eles só querem ver o número que está no painel e não se importam quanto à manutenção do veículo, se está em dia ou não. Eu prefiro comprar um veículo com 100 mil quilômetros e com todas as revisões em dia, bem cuidado, do que um carro com 50 mil quilômetros que está jogado, sem manutenção”, afirma o empresário.
Segundo o lojista, quem tem experiência com veículos até consegue identificar a adulteração, mas nem sempre é fácil comprovar a fraude. “Por alguns pontos do veículo, a gente consegue imaginar que tem um desgaste maior do que realmente está marcando a quilometragem. O funcionamento de algumas peças e componentes desperta uma certa desconfiança, mas não é algo que a gente sempre consiga afirmar”, diz.
Concorrência
O proprietário do estabelecimento ressalta ainda que muitas vendas são perdidas devido à alta quilometragem dos veículos que estão na loja. “Olha, a gente deixa de vender muitos carros por causa da quilometragem. O cliente que chega aqui, vê um veículo com 130 mil quilômetros e acha o número elevado pode ir em outro estabelecimento e achar o mesmo tipo de veículo, que na verdade teria a mesma quilometragem mas está com 60 mil quilômetros, e aí optar pela compra pelo número que aparece no painel”, exemplifica.
Por fim, Machado dá algumas dicas para que o consumidor faça uma boa compra. “É importante ver no manual se as revisões foram feitas e carimbadas pela concessionária autorizada. Se não tem nem manual, muitas vezes, é porque a quilometragem já estava avançada e então é feita adulteração. Por isso, sempre é necessário pedir o manual original do veículo”, orienta.
Tenha um profissional de confiança
As adulterações de quilometragem nos veículos evoluem tanto quanto a tecnologia utilizada pelas empresas para evitar que fraudadores retrocedam os números mostrados nos painéis. A reportagem do SERRANOSSA ouviu um dos mais procurados mecânicos da cidade para saber que armas o consumidor pode ter para identificar o problema antes da compra. A identidade do profissional será mantida em segredo.
Ver desgastes no motor e utilizar aparelhos que analisam a vazão de cilindro são algumas das formas de se verificar a adulteração. “Em um carro com 80 mil quilômetros, por exemplo, tu colocas um relógio de vazão de cilindro e tem que estar perfeito. Dá para olhar também tubo de respiro, para ver se sai fumaça. Esses são alguns pontos que um mecânico pode analisar”, explica.
Segundo o profissional, hoje todo sistema é eletrônico, o que torna ainda mais fácil a adulteração. Em cinco minutos, de acordo com ele, é possível fazer o trabalho. Com equipamento certo, não é preciso nem desmontar o painel. “Antigamente, para fazer esse trabalho, tinha que tirar o painel, aí a gente conseguia ver a adulteração através do módulo que fica atrás do painel, que dava a divergência de informações.
Hoje, os novos equipamentos, já conseguem apagar os dois registros de quilometragem’, completa.Mas até para os profissionais é difícil comprovar a fraude, porque são testes demorados. A dica para os consumidores é ter em um mecânico de confiança, além de um bom chapeador, para ver se o carro não foi batido. Também é importante conferir se os bancos não foram costurados, a direção trocada ou o painel mexido.
O serviço de adulteração de quilometragem oferecido na cidade é tão simples que o preço médio para a fraude pode sair entre R$ 100 e R$ 150. “Tem carros que mostram, nesses casos, um ponto de interrogação no canto da quilometragem, mas hoje até esse vestígio pode ser apagado”, conclui o entrevistado.
Reportagem: Jonathan Zanotto
É proibida a reprodução, total ou parcial, do texto e de todo o conteúdo sem autorização expressa do Grupo SERRANOSSA.
Siga o SERRANOSSA!
Twitter: @SERRANOSSA
Facebook: Grupo SERRANOSSA
Instagram: @serranossa
O SERRANOSSA não se responsabiliza pelas opiniões expressadas nos comentários publicados no portal.