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Na rua Dona Cecília, moravam tantos sonhos…

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O interfone toca, pego o celular para ver a hora, são quatro da manhã. Novamente o barulho estridente, “trimmmm”, agora por mais tempo. Questiono-me: “Atendo?”. Eu nem morava aí, estava de favor… Seria errado eu atender ou eles me agradeceriam por amenizar o sono que lhes fora interrompido? Agora, definitivamente acordado, surge a segunda questão: quem será a essa hora? Uma lembrança me corre o pensamento, solto um palavrão e penso: “Não, não pode ser o cara da Coca-Cola”.

Ano de 2008, estou em Porto Alegre visitando a editora que tem interesse em lançar meu primeiro livro. A reunião se prolonga mais do que o planejado, não há mais ônibus para voltar a Bento Gonçalves, precisarei ficar em Porto Alegre: “Alô, Salini? Cara, como está o apê aí, muita gente?”. Baita cara o Diego Salini, para ele era sempre fácil, só chegar e se jogar em um canto, espaço sempre tinha. No apartamento, moravam ele e o Pessalli, e por vezes o lugar também abrigava o Bruno Collaço e o Douglas Costa (Pessalli e Collaço jogam hoje na França, enquanto o Douglas Costa se mudou recentemente para a Alemanha, onde joga no Bayer de Munique). Bom, agora que vocês mais ou menos sabem quem é quem, vou continuar a história.

Passava das 20 horas quando cheguei no apartamento, estava louco de fome, e obviamente nada se tinha para comer naquele reduto onde vivia uma gurizada que treinava todos os dias a nível profissional e devorava tudo que via pela frente. Ali perto, tinha um tiozinho que vendia lanches e foi lá que o pessoal me levou para comer um xis. Escolhi o de calabresa – péssima ideia. Já estávamos no apartamento e passava das 22h quando a calabresa começou a dar sede. 

– Galera, onde está a água?
– Na torneira, né, meu! – responderam. 
– Vocês estão de sacanagem, eu não vou tomar essa água de Porto Alegre, não – retruquei com toda a elegância dos gringos da serra.
– Então manda vir uma Coca, Sandrin. 

Pois foi o que fiz. Liguei para o tio do xis calabresa, afinal sua barraquinha ficava a uns quinhentos metros do apartamento e os guris disseram que ele trazia, o que era uma grande vantagem, já que estávamos ocupados demais jogando Playstation.

Onze horas, meia noite, uma da manha. Após “escovar” os dentes – com o dedo –, dei aquela enganada na hora do enxágue e tomei um pouco da água encanada que desprezei, afinal, a Coca foi esquecida. Eram quatro da manhã e todos estavam no sono profundo quando a campainha tocou. Eu era o mais próximo do interfone e atendi: “Oi, vim entregar a Coca-Cola”. Já não era ódio que sentia. Acho que o rancor havia secado junto à sensação desértica que o sono amenizou. O orgulho venceu, desliguei o interfone sem nem responder e voltei a dormir. Dane-se o refrigerante.

Foi assim, em um apartamento na rua Dona Cecília, em frente ao pórtico de entrada do Estádio Olímpico, que aprendi a admirar aquela gurizada. Sonhadores que logo cedo se despediam dos que amavam e partiam para outra cidade amadurecer longe de suas famílias, passando vontades e fingindo ao telefone que tudo estava bem. Em um prédio quase todo pertencente a empresários de jovens atletas, vivenciei as dezenas de destinos que aí cabiam, também como aprendiam a dividir até mesmo suas roupas e correntes prateadas que faziam sucesso na época.

Foi assim que aprendi a valorizar aquilo que geralmente não notamos. Usar uma toalha como cobertor, dormir em um colchão surrado no meio da sala, sentir sede a noite toda e precisar encarar a água da torneira, escovar os dentes com o dedo. Tudo isso nos faz melhores, pois nos lembra do valor de pequenas coisas. E se tudo isso pode parecer tão importante, imaginem então quem lhe oferece um teto, uma casa, a amizade.

Entre o tanto de coisas simples que esquecemos de ver, quem sabe o  “vencer na vida” não seja o simples lembrar de agradecer?

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