“Não estamos tirando o emprego de ninguém, estamos atrás de uma vida melhor”

Há três anos, o haitiano Adma Soliman, de 35 anos, foi agredido fisicamente em uma obra onde estava trabalhando. Ao relatar o ocorrido, ele relembra do episódio de um amigo haitiano que teve os dentes quebrados também enquanto trabalhava.  Além dos episódios de violência física, as agressões verbais são recorrentes à comunidade de imigrantes de Bento Gonçalves. No ano passado, Soliman concorreu a vereador do município e conta que sofreu com as ameaças e xingamentos proferidos por um candidato a prefeito – contra o qual está movendo uma ação judicial. “As pessoas acham que a gente é diferente. A língua, a cor, não tem nada a ver. Temos todos o mesmo sangue”, declara Adma. 

O haitiano chegou a Bento Gonçalves em 2012, após o convite de uma empresária do ramo moveleiro enquanto estava em Rio Branco, no Acre. “Como eu falo Espanhol e ela tinha dificuldade de se comunicar com haitianos, ela me pediu se eu poderia vir junto com ela para traduzir e trabalhar na empresa”, conta. Adma veio ao município juntamente a um grupo de outros sete haitianos, os quais também viram no Brasil a oportunidade de uma vida melhor. Com o passar dos anos, amigos e conhecidos passaram a imigrar para o município, a partir de uma corrente de carinho característica do povo haitiano. “Nós, haitianos, vivemos repartindo o que temos. Minha mãe se sente na obrigação de me mandar dinheiro. Meus primos no Haiti, se precisam de algo, me ligam. A gente sempre ajuda um ao outro”, afirma. 

Além da busca por qualidade de vida, Adma relata que os haitianos sentem um carinho muito grande pelo Brasil. “Hoje, se a Seleção Brasileira está jogando aqui no Brasil, tudo está funcionando. Mas no Haiti, quando a seleção joga, é feriado”, revela. 


Adma Soliman, 35 anos. Foto: Eduarda Bucco

Com qualificação, mas sem emprego

A maioria dos haitianos chega ao Brasil com formações profissionais e com a habilidade de se comunicar em cerca de quatro idiomas. Adma sempre trabalhou como encanador, se especializando e pegando gosto pela área. Em Bento Gonçalves, desde que saiu da empresa de móveis, ele segue sua profissão com muito entusiasmo. Mas outros amigos ou conhecidos estão enfrentando sérias dificuldades para entrar no mercado de trabalho bento-gonçalvense. “Mesmo com mais empresas contratando agora, ainda têm muitas pessoas enfermeiras que estão no frango [trabalhando em frigorífico] e nenhuma acha uma oportunidade de trabalhar como enfermeira. Tem uma menina que estou tentando ajudar e há dois anos ela não consegue emprego. Ela é enfermeira e farmacêutica, e ela não está conseguindo por conta do preconceito”, lamenta. “Meu ajudante é engenheiro agrônomo, professor internacional, e também não consegue emprego na área”, continua. 

Lidando com o racismo

Em resposta aos áudios disseminados na semana passada pelo WhatsApp, com dizeres xenofóbicos e racistas, Adma afirma que, em nome de todos os haitianos do Brasil, repudia a atitude. “Para mim, essas pessoas que pensam assim têm memória curta. Hoje o RS e SC são formados por imigrantes italianos, alemães e polacos. Eles vieram para cá fugindo da fome, da miséria, sem nada. Hoje chegamos com mala e até dinheiro, com experiência, qualificados para trabalhar”, reflete. 
Já em relação às afirmações de que haitianos estariam roubando o emprego dos demais residentes, Adma pontua que, entre um brasileiro e um haitiano disputando uma vaga de emprego, o brasileiro quase sempre será contemplado. “Se tu ver um haitiano trabalhando em uma empresa, é porque existe qualidade. E nós somos trabalhadores dedicados, nunca perdemos um dia de trabalho e valorizamos nossos empregos”, afirma. 

Agora bento-gonçalvense

Casado com Kátia dos Santos Soliman, também de 35 anos, hoje Adma Soliman é naturalizado brasileiro e afirma que já se sente bento-gonçalvense. Considerado o representante do grupo na cidade, o encanador afirma que a comunidade haitiana tem lutado para, cada vez mais, conquistar seu espaço no município. “Agora estamos construindo uma igreja maior, entre o bairro Universitário e o Ouro Verde. E também estamos conversando com a prefeitura para termos um Centro Cultural próprio”, revela. 

Para finalizar, Adma deixa um recado a todos que ainda têm algum tipo de preconceito em relação aos haitianos e demais grupos de imigrantes: “O Brasil não é terra deles, é de todo mundo. Então as pessoas que se acham superiores, isso não existe. O que tem de diferença entre a tua cor e a minha? Tu come e eu como. Tu dorme e eu durmo. Se tu não trabalha tu não come e se eu não trabalho eu não como. Então não tem sentido vocês estarem fazendo isso com a gente. Não estamos tirando o emprego de ninguém, estamos atrás de uma vida melhor”, conclui.

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