O agitador de massas que mudou a história

A chegada do empresário caxiense Moysés Michelon a Bento Gonçalves, em 1944, coincide com um período em que a Serra Gaúcha ainda desfrutava de seu primeiro período turístico. Naquela época, muitos hotéis embelezavam a paisagem e disputavam a preferência dos hóspedes, reflexo de uma demanda em larga escala originada por volta dos anos de 1920, em que os moradores da capital subiam a Serra de trem durante o verão para fugir do calor e desfrutar dos encantos da safra da uva.  A história dele se confunde com a da história de Bento Gonçalves, sobretudo no que diz respeito ao desenvolvimento do turismo na cidade.

Foi em um dos diversos hotéis de Bento que o pai dele, Antônio, viu a oportunidade de deixar a roça e proporcionar estudo aos cinco filhos. “Vim aos dez anos no trem de passageiros de Caxias a Bento. Meu pai me trouxe junto com a minha irmã Mafalda para assistirmos a ordenação de nossa irmã mais velha no Noviciado das Irmãs de São Carlos. Ficamos hospedados no Hotel Bela Vista, ao lado do Hospital Tacchini, onde hoje está o Centro de Saúde Doutor Bozzetto”, recorda. Ironicamente, a única coisa “bela”, segundo ele, era o nome. “O banheiro era moderno. Aquele tipo que se colocava embaixo da cama”, diverte-se. “Pia, só no primeiro andar, pois não havia água corrente nos superiores. Mas como meu pai possuía uma colônia de apenas 16 hectares e queria garantir o futuro dos filhos, decidiu arriscar uma mudança radical” lembra. 

Michelon recorda as reclamações do dono. “Ele se queixava da vida de hoteleiro. Eram só ele e a esposa e, por isso, nunca tinham folga. Meu pai viu que a 50 metros existia o colégio das Irmãs Carlistas (Medianeira) e 100 metros para baixo o colégio dos Irmãos Maristas, que oferecia o curso de técnico em contabilidade. Além disso, era só cruzar a rua para ir ao hospital. Isso era importante, pois minha mãe, Josephina, andava muito doente: talvez pelo trabalho na roça e por ter dado a luz a cinco filhos, já tinha passado por duas ou três intervenções cirúrgicas. Foi então que ele disse ‘aqui é o meu futuro. Não posso dar um pedaço de terra para meus filhos, mas posso dar o colégio e depois eles que se virem!’”, relembra Michelon. 

Nos anos seguintes nasceram outros três irmãos. Como a família estava numerosa e sobrava mão de obra no hotel, Michelon decidiu que estava na hora de trabalhar por conta. “Apareceu um emprego em um armazém de secos e molhados de um compadre e vizinho do meu pai, ao lado do atual Edifício Menegotto. Eu queria a vaga de distribuidor de refrigerante, cerveja e batata para as cidades vizinhas”, conta. Só que, para isso, ele precisava de carteira de motorista. Naquele tempo, saber dirigir era apenas um detalhe. “Em 1950 meu pai tinha um caminhão Rugby 1927, com o qual eu havia aprendido a dirigir indo para frente e para trás. Naquela época não existia nenhum sinal de trânsito em Bento Gonçalves.

Só se sabia que para fazer a curva bastava sinalizar com o braço para fora. O delegado era amigo do meu pai. Um certo dia ele me chamou e disse ‘senhor Moysés, o senhor seu pai me pede que eu lhe dê uma carteira profissional. Eu não posso dar, a única coisa que posso fazer é não lhe enxergar dirigindo. Mas se machucar alguém, eu sou obrigado a colocar seu pai na cadeia’. Então me lembrei que a psicologia da cinta corria solta por muito menos que isso”, recorda, gargalhando.

Foi ao se formar em técnico em contabilidade, em 1956, que Michelon ingressou na empresa em que ficaria por um longo período, a Massas Alimentícias Ltda, hoje Isabela. “Durante 42 anos, eu fui um agitador de massas”, brinca, fazendo trocadilho entre a função que exercia e a posição de liderança que ocupava na comunidade desde aquela época. 

Fenavinho

Michelon foi um dos idealizadores da Festa Nacional do Vinho (Fenavinho), evento que impulsionou a divulgação de Bento Gonçalves em nível nacional e foi decisivo para o desenvolvimento turístico da cidade. O movimento para criar a Fenavinho surgiu dentro da Associação dos Ex-alunos Maristas, da qual Michelon era membro, como forma de comemorar os 25 anos dos Irmãos em Bento Gonçalves. “O engenheiro agrônomo Loreno Augusto Gracia, que era funcionário do Estado e que havia sido vice-prefeito de Bento, era o organizador da Festa de Exposição de Uvas que acontecia na igreja Cristo Rei. Partiu dele a ideia de fazer a Festa Nacional do Vinho. Então levamos isso para o prefeito Milton Rosa que, concidentemente, estava preparando a Semana de Bento e concordou em realizar as duas festas juntas”, detalha. 

Gracia foi eleito presidente da festa, porém, dias depois recebeu uma determinação da secretaria de Agricultura para fazer um curso nos Estados Unidos. Deste modo, Michelon recebeu a incumbência de assumir a presidência. “Para aceitar, eu impus condições. Quis a secretaria de Obras à minha disposição, reformulei a diretoria e requisitei apoio financeiro do empresariado. Convoquei uma reunião e, em dois dias, arrecadamos o suficiente para realizar o evento. As pessoas se comprometeram, existia o espírito comunitário”, constata.  

Turismo x trem

A rede ferroviária possibilitava que longas distâncias, outrora intransponíveis, pudessem ser percorridas em algumas horas. Com isso, muitas famílias de Porto Alegre e das redondezas embarcavam rumo à Serra Gaúcha para fugir do mormaço da capital e saborear uvas em pleno período de safra. Isso criou uma demanda responsável pela abertura de dezenas de hotéis nas décadas de 1920 e 1930. “Em frente à Cristo Rei, existia o Hotel América. Onde hoje é o Dall´Onder Grande Hotel estava situado o Hotel Planalto, cujos funcionários dormiam no prédio que hoje abriga o Museu do Imigrante. Também existiam os hotéis De Gasperi, Estação, Elite, Paris Hotel, Zanoni, Bela Vista, Valenti, Pasqueti e Dall’Orsoletta. E isso não acontecia só em Bento, mas também no interior, como em Pinto Bandeira e Monte Belo do Sul (municípios que na época pertenciam a Bento Gonçalves”, assegura. A construção da BR-116, na década de 1950, foi a causa da mudança radical do conceito turístico do Rio Grande do Sul, levando a rede hoteleira local ao declínio. A rodovia abriu espaço para o fluxo seguir para o Litoral, primeiramente por Santo Antônio da Patrulha e depois pela BR-101. “Depois disso, Bento Gonçalves voltou ao mapa somente em 1967, quando inauguramos a Fenavinho”, enfatiza Michelon.

O Vale dos Vinhedos

A origem do Vale dos Vinhedos, hoje um dos maiores destinos turísticos do Brasil, iniciou de forma improvisada, nos anos 80. A ideia era proporcionar diversão a alguns funcionários do Banco do Brasil. “A Atuaserra e a Aprovale, criadas pelo Tarcísio [Michelon, irmão de Moysés], deram um grande impulso ao município. A partir disso, surgiram o Caminhos de Pedra e o Vale dos Vinhedos. Os primeiros a visitarem turisticamente o roteiro foram funcionários do Banco do Brasil que estavam em treinamento e queriam se divertir à noite. Foi então que a Ines Rizzardo [cantora de música italiana] começou a se apresentar no meio das pipas, enquanto a Maria, mãe do Juarez Piva [empresário], fazia comida típica no fogão a lenha. Os funcionários se divertiam e faziam encomenda de vinhos, que depois eram entregues no hotel onde eles estavam hospedados”, recorda.

Copa e futuro

Para Michelon, Bento Gonçalves conta com serviços de boa qualidade, mas enfrenta como empecilhos problemas difíceis de sanar, que dependem de outras esferas. “Estamos bem aos olhos da Fifa. Nosso grande problema são as estradas e aeroportos. Seleção tem dia e hora para entrar em campo e não podemos ficar à mercê do clima. Só que isso não depende de nós, depende dos governos estadual e federal. Nesse sentido, temos muito a fazer. A Copa é a solução para a rede hoteleira? Não, porque são só 30 dias. No entanto, ela garante um upgrade na imagem e isso atrai novos turistas”. 

Segundo Michelon, independentemente da visibilidade gerada pela Copa do Mundo, a escolha do Vale dos Vinhedos como destino turístico tem aumentado gradativamente, mesmo que apenas em épocas específicas. 

Em 2012, 23 mil hóspedes fizeram check-in no Hotel Vila Michelon, do qual o empresário é proprietário. Até o final de setembro deste ano, foram 16 mil. Aos olhos de Michelon, o futuro é promissor. “Precisamos vencer a sazonalidade, pois a rede hoteleira tem despesas nos 365 dias do ano. Neste momento estamos com um nível de ocupação de 52%. É claro que o turismo de negócios ajuda, mas ele é pontual”, salienta. “Nós temos a oportunidade de contribuir muito mais para o Produto Interno Bruto (PIB). Somos um dos destinos indutores do país e um dos principais do Estado. Quem vem para a Serra Gaúcha fica encantado não só pelo clima, mas, principalmente, pelo nosso jeito de ser. Temos clientes que escolhem nosso hotel todos os anos desde que abrimos. Bento Gonçalves tem essa aura”, garante.  

Reportagem: Priscila Boeira


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