O morador de Bento que atravessou o país para salvar a vida de um desconhecido

E se você recebesse uma ligação em uma sexta-feira dizendo que na segunda deveria estar do outro lado do país porque uma pessoa que você nem conhece precisa da sua medula óssea? Foi o que aconteceu com o bento-gonçalvense Rafael Audibert, de 33 anos. Na última sexta-feira, dia 1°, o cabeleireiro foi surpreendido com o contato do Registro Nacional de Doadores Voluntários de Medula Óssea (Redome), que o convocou para estar em Natal, no Rio Grande do Norte, pois ele era 100% compatível com uma paciente e poderia salvar a vida dela. Rafael não pensou duas vezes, fez as malas e embarcou para viver uma história que promete ser a mais incrível de sua vida. 

Essa história começou muito antes, há aproximadamente 10 anos, quando uma campanha mobilizou a cidade em torno do bento-gonçalvense Bruno Basso.  Sensibilizado, Rafael Audibert aproveitou uma campanha do Hemocentro na prefeitura Municipal e cadastrou-se como doador. Na época, coletaram seu sangue, que ficou no banco mundial de doadores. Somente no ano passado, em julho, a central do Redome, instalada no Rio de Janeiro, entrou em contato com ele. “Eles me ligaram e perguntaram se eu ainda tinha interesse em realizar a doação de medula e se eu poderia me dirigir ao Hemocentro de Caxias do Sul para uma nova coleta de sangue e uma ampliação. Eu fui até lá e em seguida eles me enviaram um e-mail muito gentil agradecendo a disponibilidade. Então, um novo contato só foi ocorrer na última sexta-feira, quase sete meses depois, quando comunicaram que eu era 100% compatível com uma paciente”, relata.


 

Viagem a Natal  
Rafael foi questionado se poderia estar em Natal na segunda-feira, dia 4, no hospital que é o centro de referência para tratamento de câncer, juntamente com um acompanhante, para fazer alguns exames. Todas as despesas com passagens áreas, hospedagens e alimentação seriam custeadas pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Ele topou. No hospital, passou por uma série de exames para avaliar se não existe qualquer risco à sua saúde durante o procedimento. “Na verdade, a doação de medula óssea é uma cirurgia ambulatorial. São feitas coletas do osso do quadril, da bacia – que é o maior osso que a gente tem no corpo – onde está a medula óssea. É aplicada uma anestesia raquidiana (a mesma que grávidas recebem antes de fazer uma cesárea, por exemplo), e logo após os médicos fazem furos no osso, de onde será coletado cerca de um litro de medula, que é a quantidade necessária para a paciente. Eu soube que todo o procedimento dura em torno de duas horas e não oferece nenhum tipo de risco ao doador”, explica Rafael, que deve ficar dois dias internado. A cirurgia deve ser realizada no próximo dia 20, quando ele retorna a Natal.

Todo o processo de doação é feito de forma anônima. Nem o médico que faz a coleta conhece quem vai receber a medula. “Existe uma pessoa que faz toda a intermediação. Isso impede que o doador tente pedir algum tipo de suborno, dinheiro ou vantagem por estar salvando a vida de alguém”, detalha Rafael. “O que sei é que a paciente é uma mulher e que ela pesa 48 quilos”. Somente após um ano da doação e se o tratamento for efetivo, caso ambas as partes estejam de acordo, o Estado intermedeia um encontro. 

Motivação
Além da avalição médica, o cabeleireiro de Bento também passa por uma avaliação psicológica. “Eles me questionaram o tempo todo se realmente eu queria doar, deixaram claro que eu posso desistir a qualquer momento, embora a minha recusa pudesse causar a morte de alguém. Afinal, a chance de encontrar uma medula óssea compatível varia de um para 100 mil ou de 1 para 1 milhão, porque tudo depende da herança genética de cada um. Então, seria muito difícil essa paciente encontrar outro doador compatível. Não conseguiria dormir se dissesse não”, confessa Rafael.

Mais do que salvar a vida de uma pessoa que realmente precisa, Rafael tem outras motivações: sua mãe e seu pai faleceram vítimas de câncer e, geralmente, quem necessita de doação de medula óssea são pacientes com algum tipo de linfoma, leucemia, entre outras doenças, que são consideradas uma forma de câncer. Outro motivo que fez Rafael não titubear em aceitar doar sua medula foi o fato de ele também ser um transplantado: em janeiro de 2015, ele fez a cirurgia de transplante de córnea no olho esquerdo, o que mudou, literalmente, a forma como ele enxerga a vida. Em 2020, ele pretende fazer no olho direito, e contará com a doação de outra córnea para enxergar melhor. 

REPERCUSSÃO E DESINFORMAÇÃO
Desde que ficou sabendo que iria viajar para fazer os exames e posteriormente a cirurgia para a doação, Rafael tem compartilhado em suas redes sociais (@raudibert no Instagram) todos os detalhes desta decisão e tem recebido centenas de mensagens de apoio, cumprimentos pela iniciativa e, claro, questionamentos sobre tudo. 

Estudante de Psicologia, ele aproveita essa experiência para observar e anotar as reações das pessoas quanto a sua decisão de se submeter a duas longas viagens, a exames, a uma cirurgia e a ficar hospitalizado em prol de uma pessoa que sequer conhece. “Eu tenho recebido muitos elogios, a maioria dizendo que tem orgulho da minha ação, que sou muito humano e tudo mais. Mas o que eu penso sobre isso é que todas as pessoas deveriam ter a mesma iniciativa. Eu nasci com essa medula, não é algo que eu tive que trabalhar para ter. Agora uma pessoa que tem a mesma herança genética que eu precisa dela para viver. Minha medula vai se regenerar em duas semanas. Então, não deveria ser algo tão especial assim, deveria ser algo simples, normal, comum. E isso tudo acontece porque é um assunto que é pouco discutido e conversado e geralmente só é tema quando alguém da família precisa”, destaca Rafael.

Para ele, a doação de medula óssea é um tabu a ser quebrado. Desde o ano passado, ele vem contabilizando quantas pessoas do seu círculo de amigos e conhecidos tomariam a mesma atitude que ele e 75% delas disseram que não colocariam a vida delas em risco por um desconhecido. “O que percebi é que é pura falta de informação, conhecimento. As pessoas acham que vão se colocar em risco, quando na verdade o organismo se recupera complemente em duas ou três semanas. A ignorância faz as pessoas terem medo e muitas outras estão morrendo por causa disso. Então eu acho que temos que conscientizar a doar e não apenas achar bonito que os outros doem”, acredita, Rafael.

Já em Bento, Rafael agora espera ansiosamente a hora de retornar para a cidade de Natal para finalmente fazer a doação de medula óssea. Enquanto isso, vai buscar incentivar muitas outras pessoas a fazerem o mesmo. “A sensação de estar salvando a vida de alguém é indescritível. Eu sei que de alguma forma eu vou ajudar alguém a seguir em frente, com um pedacinho de mim. Terei uma irmã de sangue e espero um dia poder conhecê-la”, completa.
 

Seja você também um doador

Para se cadastrar como doador de medula óssea, basta ir até o hemocentro mais próximo – na região, é em Caxias do Sul. A doação é voluntária, ou seja, não haverá nenhuma forma de pagamento para o seu cadastramento. Se você concordar em se cadastrar no Registro Brasileiro de Doadores Voluntários de Medula Óssea (Redome), além de algumas informações pessoais, serão coletados 10ml de sangue para a realização de um exame através do qual serão identificadas as características de suas células. Caso seja preciso, você será chamado para nova coleta, igual à primeira, para melhor caracterizar o resultado. 
Estima-se que a chance de se encontrar um doador compatível seja de 1 em 100 entre doadores da própria família e 1 em 100 mil entre pessoas que não sejam parentes.