“O serviço público é essencial e as pessoas deveriam prestigiar mais, porque a ausência dele significa o caos”

A Defensoria Pública, por essência, oferece orientação jurídica, promoção dos direitos humanos e a defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, às pessoas em situação de vulnerabilidade econômica, social ou jurídica. Durante a pandemia, com o endividamento das famílias e mais pessoas entrando na linha de pobreza, os serviços da instituição tornaram-se ainda mais essenciais.

Em Bento Gonçalves, Rafael Carrard, Defensor Público titular da 1ª Defensoria Pública, que atua à frente da 1ª Vara Criminal, Tribunal do Júri, Vara de Execuções Criminais e Juizado Especial da Fazenda Pública, esteve no SERRANOSSA para falar sobre o atual cenário, a alta demanda de assessoria jurídica, como a pandemia afetou e mudou os trabalhos para a comunidade e ainda sobre a relação da comunidade com o servidor público.

A entrevista completa, em vídeo, pode ser conferida na fanpage do SERRANOSSA.


 

SERRANOSSA: Gostaria que o senhor esclarecesse quais as principais funções da Defensoria Pública?
Rafael Carrard:
A Defensoria Pública é uma instituição de Estado, que não está vinculada a nenhum dos Poderes – Executivo, Legislativo ou Judiciário. Somos, ao lado do Ministério Público, uma instituição autônoma e, por conta disso, temos liberdade para entrar com processos contra qualquer pessoa ou instituição. Prova disso é que uma das minhas atribuições na Defensoria Pública, que é o Juizado Especial da Fazenda Pública, diz respeito a ações de medicamentos, de saúde e nós litigamos, muitas vezes, contra os municípios e o próprio Estado do Rio Grande do Sul para garantir direitos para a comunidade. 

SN: E a Defensoria pode atuar em todas as áreas?
Carrard:
Não são em todas as áreas. Nós atuamos especialmente nas áreas de família, cível, penal, execução penal e no direito civil de uma forma geral. Isso na Justiça Estadual. A Defensoria Pública Estadual não atua, por exemplo, na área trabalhista ou previdenciária, porque essas são matérias do âmbito federal.

SN: Quem são as pessoas que podem usufruir dos serviços da Defensoria?
Carrard:
A Defensoria Pública presta assistência jurídica àquelas pessoas que não têm acesso à advocacia privada. Nós chamamos de pessoas hipossuficientes. Via de regra, essa identificação se dá por conta uma carência econômica, mas não é só isso. Nós temos grupos vulneráveis que também podem recorrer à Defensoria, independentemente da sua situação financeira: são as minorias, aqueles grupos que têm dificuldade de mobilização. Tanto que nós podemos atuar no âmbito individual e em ações coletivas. Mas no âmbito econômico, que acaba sendo relevante, temos algumas regras que dizem quem são essas pessoas que podem acessar os serviços e a principal delas é a pessoa ter renda de até três salários mínimos. Claro que há deduções em regramentos administrativos e no site da Defensoria Pública tem uma lista completa e detalhada de pessoas que podem ser atendidas. Nós também podemos atender pessoas jurídicas, desde que se enquadrem neste critério de hipossuficiência. E há também todo um regramento de proteção à criança, ao adolescente e às mulheres. Nós temos núcleos especializados, que prestam assessoria a grupos específicos. Então é muito larga a abrangência da nossa atuação.

SN: O prédio da Defensoria Pública, no bairro Planalto, é relativamente novo e moderno. Como é a estrutura de trabalho por aqui?
Carrard:
Nós temos uma estrutura física muito boa e, claro, que a Defensoria Pública, como qualquer outra instituição pública, sofre com carência de servidores e, consequentemente, isso afeta o atendimento da população. Mas temos um lugar de acolhimento muito saudável, onde as pessoas têm fácil acesso.

SN: Quais estão sendo os principais desafios da pandemia e como ela tem interferido no trabalho da Defensoria Pública?
Carrard:
A pandemia, indiscutivelmente, afetou os serviços públicos, mas é muito importante que a comunidade entenda que a Defensoria Pública, assim como o Judiciário e o Ministério Público, não parou um dia sequer. A gente teve que se adaptar, diante da impossibilidade de contato direto com os assistidos, e fizemos isso com muita rapidez. Nós passamos a atender pessoalmente aquelas pessoas que não têm possibilidade tecnológica, mas também inserimos atendimentos por telefone, videochamadas etc. Nós continuamos atuando em um ritmo bem expressivo. Para se ter uma ideia, no ano passado, a Defensoria Pública Estadual prestou 1 milhão e 200 mil atendimentos. Isso durante a pandemia. E, em alguns aspectos, esse atendimento foi ainda mais qualificado. Por exemplo, eu atendo a casa prisional de Bento e meu atendimento ordinário é ir até lá e conversar com os presos. Mas nós tínhamos um problema de internet, que existe até hoje no presídio. Então a casa prisional se equipou e eu passei atender os presos da minha casa ou até da Defensoria e o resultado é que conseguimos imprimir um ritmo melhor de atendimento. Porque, ao mesmo tempo em que eu atendia o apenado, conseguia consultar as bases, o sistema, e isso impôs agilidade. E o que aparentemente poderia surtir um efeito negativo acabou sendo positivo. É evidente que eu preciso estar no presídio para inspeções e para fins fiscalizatórios, mas o atendimento on-line é uma tendência que pode ficar porque se mostrou muito eficiente.

SN: Sabemos que a população cobra dos órgãos de segurança pública e do Judiciário resoluções rápidas de casos, especialmente na questão penal. Na sua avaliação, isso pode acarretar excessos ou desprestígio a algumas garantias constitucionais?
Carrard:
Esse é um problema que identificamos no Brasil há vários anos. E isso é típico de países em processo de redemocratização, como nós. Passamos por períodos turbulentos na nossa história, houve um aprimoramento democrático e a constituição passou a prever uma série de garantias para todo cidadão. Só que, por não termos uma tradição jurídica e social muito presente, as pessoas, muitos por aspectos políticos e outros por motivos não tão nobres, passaram a desdenhar destas garantias e a questioná-las, dizendo que o Judiciário ou as instituições existem para proteger bandido. É claro que, antes que alguém sugira que eu leve um bandido para casa, não estou passando a mão na cabeça de ninguém. Mas é importante que a comunidade entenda que quando falamos em garantias e direitos estamos falando de toda a comunidade brasileira e não de A ou B. Eu não tenho dúvida de que aquele que fez algo errado tem que cumprir pena, mas estamos há tempos batendo somente nessa tecla e não evoluímos. Essa conduta sistemática de nós querermos o “quanto pior, melhor”, inclusive no sistema prisional, não faz a gente sair do chão. Quanto pior o sistema prisional, mais problemas teremos na rua. 

SN: A "Lei Anticrime" fez alterações importantes no Código de Processo Penal. Uma delas diz respeito à determinação de que se reavaliem as prisões preventivas com mais de 90 dias. Isso tem sido seguido?
Carrard:
Aqui em Bento, sim. Os juízes daqui são muito cuidadosos com isso e a comunidade jurídica de forma geral também. E isso é algo importante. A realidade do Rio Grande do Sul é muito distinta de outras regiões do Brasil, ainda temos uma comunidade jurídica muito responsável. Mas em outros locais do país as pessoas são simplesmente abandonadas e, por isso, esse tipo de previsão normativa é muito importante, especialmente em alguns rincões do Brasil onde presos são esquecidos. A regra é que a pessoa responda o processo solta e fique presa apenas se houver necessidade, como a reincidência, por exemplo. Mas no país não temos condições de prender todas as pessoas que cometem crimes, teríamos que ter uns quatro presídios por cidade. É uma disposição importante porque faz com que a cada 90 dias se reavalie a necessidade de manter a prisão. 

SN: Recentemente a Defensoria Pública do Rio Grande do Sul lançou a campanha “Nome Limpo”, com o objetivo de incentivar a prática conciliatória e formalizar acordos entre credores e devedores, evitando ações judiciais. Como foi o resultado deste trabalho aqui em Bento? E quais outras ações a Defensoria desenvolve a fim de contribuir com a sociedade?
Carrard:
O Direito Conciliatório vem ganhando espaço e isso é bom para todos. Porque o Judiciário recebe milhares de ações por ano e os servidores estão cada vez em menor número. E esse tipo de iniciativa contribui para o desafogamento do Judiciário. Temos, por exemplo, um problema grande de pessoas endividadas e se busca um acordo com o credor. E isso é uma tendência, muito mais na área cível, de família, do que na área criminal. Em Bento, a gente chegou a promover encontros com casais que estavam em vias de separação e servidores qualificados conversavam com as partes, expondo as virtudes de uma separação amigável. Assim, tudo era levado ao Judiciário apenas para homologação. Nós tivemos um índice muito grande de sucesso. 

SN: Sabemos que o serviço público é recorrentemente alvo de ataques. Como o senhor vê essa situação no país?
Carrard
: Por muitos motivos, especialmente político, criou-se essa ideia de se falar contra o serviço público. Claro que talvez eu seja suspeito para falar, porque a vida toda atuo nesta área, mas acredito que as pessoas deveriam se inteirar mais de como a atividade pública se desenvolve, inclusive no Judiciário e nas instituições que orbitam o poder. Posso garantir que é uma carga de trabalho quase que desumana. Nós temos um número de servidores muito limitado. E, em termos políticos, se criou um nicho de críticos ao serviço público e qualquer coisa que se reverta a favor disso é criticada hoje em dia. Pode haver excessos pontuais que merecem crítica e observações e, para isso, existem as ouvidorias e a própria imprensa. Não se é contra a crítica. Mas a comunidade deveria conhecer os trâmites internos, o trabalho dessas instituições. O serviço público é um serviço essencial e as pessoas deveriam prestigiar mais, porque a ausência dele significa o caos e um custo a mais para a população. Então acredito que as pessoas deveriam defender o serviço público, sob pena de serem as mais prejudicadas na ausência dele.

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