O voo
Toda vez que eu toco em algum assunto polêmico, ou de repercussão social, fico receoso da forma como isso pode ser recebido pelos leitores. Afinal, fui veementemente criticado quando defendi a vacinação em massa de maneira compulsória. Ainda assim, hoje, sinto-me compelido a falar sobre um dos julgamentos mais esperados dos últimos anos: o caso da Boate Kiss.
Vou me furtar de explicar do que se trata, já que todos sabem que foi uma das maiores tragédias da atualidade.
Tive a oportunidade de assistir a alguns momentos da defesa de um dos acusados, realizada de maneira magistral pelo Dr. Leonardo Santiago, jovem e brilhante advogado criminalista, e pelo Dr. Jader Marques, querido professor, colega e a quem tenho a honra de chamar de amigo. Aliás, já não é segredo para ninguém aqui nesse espaço a minha admiração por ele e pelo trabalho dele. Eu, desde a época da tragédia, não tenho dúvida de que se trata de um acidente. Um acidente gravíssimo. Mas um acidente. Duvido que qualquer pessoa, naquela ocasião, tenha pensado que naquele dia iria envolver-se na morte de alguém. Muito menos na morte de mais de 200 pessoas. E mesmo para aqueles que dizem que houve negligência de quem quer que seja, ressalto que os próprios participantes do evento estavam lá buscando aquele show de pirotecnia. Muitos deles assistiram ao show repetidas vezes, justamente por se tratar de um espetáculo fantástico de pirotecnia. Pelo menos quem viu relatou isso… Aliás, eu mesmo lembro de quantas vezes Max, hoje falecido, de maneira precoce, de enfarto, e eu solicitamos que chamassem donos de estabelecimentos lotados para que nos deixassem entrar, mesmo sabendo que a capacidade do local estava esgotada.
Nós também assumíamos o risco. E colocávamos todos os demais, proprietários, licenciadores e frequentadores, em risco. Mas não queríamos, por óbvio, que nada de ruim acontecesse. Trata-se, sim, de um lamentável acidente. E como o nome diz, foi um acidente. Não foi vontade de ninguém. Foi uma fatalidade. Aquele espetáculo já havia acontecido em diversas outras oportunidades, de maneira segura. Por que, então, dessa vez, daria errado?
Tal qual um voo. Aviões decolam e pousam centenas de milhares de vezes todos os dias. Dirigimos nossos veículos pelo menos duas vezes ao dia, quando não mais. Em nenhuma dessas vezes queremos causar ou participar da morte de alguém. Dizer que assumimos o risco de que tal evento ocorra, pelo simples fato de dirigirmos ou decolarmos, por certo, seria uma interpretação equivocada.
Denzel Washington, quando protagoniza o filme “O Voo”, diz como um piloto que salva praticamente todos os passageiros e tripulantes da aeronave por ele comandada, por certo, naquela ocasião, não tinha intenção de participar da morte de ninguém. Muito antes pelo contrário, mesmo fazendo tudo certo durante o voo, ele acaba por não conseguir evitar a queda, mas evita a morte de praticamente todos aqueles que estavam com ele. Até porque ele sabia que, se algo desse errado, ele também morreria.
Eu comparo o episódio da Boate Kiss a um voo. Se desse errado, como de fato deu, todos morreriam. Por isso, não há dolo, culpa ou vontades. Foi, sim, uma fatalidade. Espero que assim seja tratado.
E não estou aqui afastando a dor daqueles que perderam alguém. Sinto, sim, muito por todos os que se foram e também por todos aqueles que ficaram, familiares daqueles que se foram. Porém, nesse caso em específico, como em outros, quando se trata de julgamento de acidente, a maior punição que pode recair sobre o acusado, que está sendo julgado pelo fato, é saber que teve participação em fatos dos quais puderam decorrer a morte de alguém.
Até a próxima!