Órfãos de pais vivos

Eles têm pais, mas querem uma família. Têm abrigo, mas desejam um lar. São muito jovens, mas já têm história e sonham com um recomeço. Crianças maltratadas lotam os abrigos de Caxias do Sul e revelam que são a negligência e o abandono as principais causas de acolhimentos e de denúncias registradas no Conselho Tutelar. Nos últimos meses, os abrigos de menores no município operam com todas as vagas preenchidas. Os chamados orfanatos raramente abrigam órfãos: recebem mais filhos de pessoas com problemas sociais, principalmente vícios, do que crianças cujos pais tenham morrido.

É o caso do primeiro bebê nascido em Caxias em 2012, filha de uma usuária de drogas, que frequenta pontos de prostituição. A menina foi deixada no Hospital Geral e encaminhada para um abrigo da prefeitura, onde terá o futuro decidido pela lei.

Entre as 120 crianças e adolescentes acolhidas pelo município  está a menina V. Ela foi recebida no abrigo Sol Nascente, com apenas um mês de vida, depois de ter sido abandonada pela mãe na casa da vizinha P., 25, que aceitou cuidar dela por uma noite para ganhar R$ 100. O valor seria pago no dia seguinte, quando devolveria a criança, mas a mãe não cumpriu o combinado: apareceu depois de uma semana, disse que não tinha para onde ir e que estava sendo perseguida por traficantes. “Ela falaria com os familiares e viria buscar a criança, mas não veio e nem atendeu mais o celular”, diz a vizinha, que tem três filhos, inclusive um bebê.

Depois de dez dias do abandono, V. foi encaminhada, pelo Conselho Tutelar, ao abrigo. Foi constatado que a mãe já havia deixado mais duas crianças recém-nascidas em situação similar, que hoje estão sendo cuidadas pela avó materna em condições precárias. V. ainda não tem destino definido. “Quando a recebi, ela estava suja, as roupas cheiravam a cigarro e tinha assaduras profundas, além de estar resfriada”, afirma a vizinha.

Histórias como esta lotam os seis abrigos de Caxias, que trabalham com as 120 vagas esgotadas. Em 2010, 226 menores passaram pelas casas, em 2011 o grupo cresceu para 249.  Esses números não incluem os infratores.

A diretora da Infância e Juventude da Fundação de Assistência Social (FAS), Miriam Nora, diz que o principal motivo do abandono é a negligência, que faz com que a maioria dos abrigados necessite de medicação psiquiátrica. “As crianças que estão nos abrigos são órfãs de pais vivos. Quando os pais morrem, alguém sempre acolhe”, comenta.

A assistente social conta que nos últimos meses aumentaram os acolhimentos, principalmente de bebês deixados em hospitais. “Os abrigos estão sempre lotados, quando abre uma ou duas vagas já tem outras crianças para encaminhar”, enfatiza.

Além das instituições, existe o sistema de família acolhedora, no qual a criança fica em uma casa até ser definido para quem irá a guarda. “Este projeto, além de ser uma alternativa no caso de superlotação, dá um resultado muito bom, devido à convivência familiar”, explica. 

A espera pela adoção

Os abrigos têm uma boa estrutura, as crianças vão para escola, praticam esportes, assistem televisão, brincam, são bem alimentadas e recebem apoio psicológico. Mesmo assim, sentem muita falta da família. “Alguns chegam a fugir para casa e quando percebem que nada mudou, voltam para o abrigo”, diz a psicóloga Elisa Azambuja, coordenadora da casa Caminho da Esperança.

Durante o período em que estão no abrigo, só podem receber a visita de quem tem a sua guarda. Crianças que foram destituídas da família não podem ter contato com ela. É o caso de A., 14 anos, que espera por adoção. Ela está no Caminho da Esperança há dois anos e meio e foi desvinculada dos pais, por maus-tratos. Tem sete irmãos, sendo que um foi adotado e os outros estão em abrigos. Questionada sobre seus desejos para o futuro, ela diz que apenas gostaria de ver o pai, porém, não há nenhum contato para localizá-lo. “Sinto muita saudade do meu pai, a última vez que eu o vi, ele estava doente. Tenho medo que ele morra e eu não esteja por perto. Faria qualquer coisa para vê-lo, nem que fosse só mais uma vez [suspiro e choro]. A minha mãe e meu padrasto eu não quero ver, não gosto nem de lembrar deles”, desabafa.

A coordenadora do abrigo explica que muitos pais vão visitar os filhos embriagados ou sob efeito de drogas e prometem buscá-los, mas não têm condições e acabam causando um sofrimento maior. Por isso, o juiz opta pela destituição familiar, proibindo qualquer contato. “Mesmo que os pais os maltratem, quando estão longe sentem saudades e criam uma fantasia da família perfeita”, esclarece a psicóloga.

Desde que foi destituída, A. está esperando para ser adotada. “Eu sei que encontrar meu pai é quase impossível. Então, conseguir alguém para me adotar também me deixaria muito feliz. Você tem filhos, tia?”, pergunta a menina à repórter.

O abrigo Caminho da Esperança acolheu 31 crianças em 2011, 16 já estavam na casa desde o ano anterior, 15 são novos. Apenas cinco foram adotados.

Em 2010, das 226 crianças abrigadas em Caxias do Sul, 198 voltaram para casa e 19 foram adotadas. Em 2011, o número subiu para 249 acolhidos. Destes, 34 são os que foram para casa e tiveram que reingressar no abrigo. O total de crianças adotadas no ano passado foi de 21, duas a mais que no ano anterior.

Quem quiser adotar precisa ir ao Juizado da Infância e Juventude, que fica no 6º andar do Fórum de Caxias do Sul e fazer uma inscrição.

Drogas lideram motivos

Segundo a coordenadora do abrigo Sol Nascente, Adriane Palhano, 90% dos abrigados são filhos de usuários de drogas. “Antigamente as crianças vinham devido à pobreza familiar, hoje é por causa da negligência estimulada, principalmente, pelo uso de drogas”, afirma.

É a situação vivenciada pela recicladora L., 25 anos, que tem quatro filhos no abrigo. Ela conta que os vizinhos a denunciaram, pois, por ser usuária de drogas e pelo pai das crianças estar preso, os menores não recebiam os cuidados necessários. “Não estou mais usando drogas, quero fazer um curso, arrumar um trabalho melhor e levar meus filhos de volta para casa”. L. vive com R$ 500 mensais e mora na casa da mãe.

O Sol Nascente tem 30 vagas e já chegou a abrigar 32 crianças. A superlotação ocorreu com a chegada de nove crianças da mesma família, no ano passado. Eles foram encaminhados ao abrigo porque os pais são alcoólatras e não cuidavam deles. O número de abrigados muda semanalmente, de acordo com novas denúncias e a necessidade de recolhimento dos menores.

O coordenador do Conselho Tutelar da Região Norte, Paulo Borges, também aponta a negligência, relacionada às drogas, como o principal fator de denúncias contra menores, além de maus-tratos. “Há pais que deixam os filhos na escola e não aparecem para buscá-los. São negligências de todos os tipos, como maus-tratos, falta de alimentação, de higiene, de acompanhamento na escola, descuido com a saúde e abuso sexual. Enfim, abandono mesmo”, explica.

Quem quiser apadrinhar uma criança deve procurar um abrigo e fazer uma entrevista com a assistente social, para receber orientações.

No berçário

A diretora da Infância e Juventude da FAS, Miriam Nora, explica que mudou o perfil das crianças abandonadas nos últimos anos, com o aumento do número de bebês.

Em visita ao abrigo Sol Nascente, no final de 2011, a reportagem do SERRANOSSA encontrou seis bebês, com até um ano de idade e oito menores de seis anos. O que chamou atenção é o fato de todos terem características que normalmente atraem pais que queiram adotar, como pele e olhos claros. 

O ambiente do berçário é divertido, cheio de brinquedos. As crianças ganham colo e carinho das cuidadoras, sempre que possível e quase não se ouve choro. De acordo com a coordenadora da casa, Adriane Palhano, os bebês ficam, no mínimo, cinco meses no abrigo até ser decidido se eles vão para adoção ou se serão encaminhados para alguém da família. Seja qual for o destino de cada criança, todas têm um desejo em comum: querem amor.

Situação em Bento Gonçalves

Comparada com Caxias do Sul, a situação registrada em Bento Gonçalves pode ser considerada tranquila e sob controle. De acordo com o secretário municipal de Habitação e Assistência Social de Bento Gonçalves, Roberto Locatelli, o município conta com uma casa de acolhimento com capacidade para 20 atendimentos. Hoje estão abrigadas 10 crianças, sendo dois bebês, uma menina, cinco meninos e dois adolescentes. No ano de 2011, foram atendidas 45 pessoas. Locatelli diz que os menores vêm de situações de vínculos familiares rompidos, violência, drogadição dos pais e descaso familiar. Em Bento, os menores contam com o projeto Famílias Apadrinhadoras, que tem como meta garantir o atendimento individual e personalizado aos menores, visando a superação do trauma vivenciado.

Mais Conselhos Tutelares 

Segundo o coordenador do Conselho Tutelar de Caxias do Sul, Paulo Borges, uma comissão paritária, formada por instituições sociais, está discutindo a criação de mais dois conselhos tutelares para dar conta da demanda do município. “Caxias do Sul tem 440 mil habitantes e somente dois conselhos. O correto seria um Conselho para cada 100 mil habitantes. Precisamos de pelo menos mais dois”, reivindica.

Região Sul é a segunda em número de crianças abrigadas

Segundo uma pesquisa realizada pela da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), em parceria com o Ministério do Desenvolvimento Social (MDS), o Sul é a segunda região brasileira que mais tem crianças abrigadas. São 22% do total nacional, número menor apenas que o registrado na região Sudeste, que comporta 60% do total de acolhidos.

A pesquisa da Fiocruz e MDS, divulgada em agosto de 2011, revela que os abrigos brasileiros têm 36,9 mil crianças. Destes, 60% dos acolhidos têm vínculos e recebem visita dos familiares. Mais da metade deles tem menos de 11 anos e 58% são negros ou pardos. O tempo médio de acolhimento de crianças e adolescentes no Brasil é de 24,2 meses. O estudo mostrou, também, que 19% dos meninos e meninas acolhidos já viveram nas ruas. Atualmente são 24 mil vivendo nas ruas, sendo que 70% destes alegam maus tratos dos pais.

Alterações no ECA

Uma alteração no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), em vigor desde novembro de 2009, prevê que o tempo máximo de acolhimento seja de dois anos. Com isso, a partir daquele ano, o número de menores nesta situação deveria diminuir.

A pesquisa do MDS mostra que quase 70% das instituições de acolhimento foram criadas nos últimos 15 anos, visando remediar situações de violação de direitos como negligência e maus tratos. No entanto, com o aumento de instituições cresce o número de crianças abrigadas. Por enquanto, com a demora em definir a situação destas crianças, o problema só aumenta.

Em vigor desde novembro de 2009, a Nova Lei de Adoção promoveu outras alterações no ECA. Uma delas é a reavaliação, pelo juiz, da situação das crianças acolhidas a cada seis meses. Outra mudança é que os bebês podem ficar acolhidos até 2 anos. Depois deste período, ou retornam ao convívio familiar ou são encaminhados para a adoção. Este procedimento evita que a criança fique maior e tenha mais dificuldade para ser adotada.

São tentativas para amenizar um problema crescente, em um país que não tem nenhuma política de controle de natalidade e uma complexa burocracia para a adoção. Enquanto isso, a cada ano cresce o número daqueles que esperam pela sorte na janela de um abrigo. 

Alexandra Duarte

 

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