Os sinos rachados de nosso tempo
Imagine uma obra tão esplêndida que quando erguida muitos a viam como sendo feita pelo próprio Deus. Reis, imperadores, multidões, da monarquia aos plebeus, gente do mundo todo; raças e cores, crenças e diferentes ideias de um mundo novo. Milhares, milhões e todos, um por um, caindo, sendo consumidos pelo tempo. Cem, duzentos, quatrocentos, oitocentos anos, séculos atrás de séculos e lá está aquela obra máxima, imponente, resiliente, tão próxima, mas tão incontável. Essa era a Catedral de Notre-Dame em Paris: era, pois deixou de ser a virgem, a intocável a invulnerável.
Sei que o parágrafo acima parece demasiadamente poético, até exagerado, mas acredito que tal estrutura linguística seja necessária para chegar ao ponto fundamental: o ser humano moderno está tão mais exposto que as paredes que resistem aos milhares de anos.
Por que, justo agora, presenciamos “acidentes” desse tipo? Por que, em plena era do cuidado, da proteção, das medidas tecnológicas, das previsões matemáticas, justo agora presenciamos o incêndio de verdadeiros tesouros da humanidade? Ora, não estamos em guerra, não temos um estado de calamidade declarado, aliás, nunca o ser humano esteve tão em paz com seu vizinho. Basta estudarmos um pouquinho da história para perceber: vivemos a era da paz. Sim, da paz. É o período mais longo da humanidade sem uma grande guerra. Se estamos tão aparados tecnologicamente, se hoje podemos prever falhas e evitá-las, como uma catedral quase milenar simplesmente incendeia? E aos que dizem “acontece”, pergunto: por que somente agora? Por que justamente em um tempo em que isso deveria menos ter chances de acontecer?
Na medida em que o homem tenta redesenhar suas estruturas sociais, também se expõe a toda fragilidade que o circunda. Se tão expostos éramos a doenças e à violência séculos atrás, hoje somos um alvo fácil de nós mesmos, de nossa inconstância e instabilidade. Nossa identidade derrete diariamente, escorrendo em direção ao ralo do que não pode ser mais capturado. Se antes éramos o mecânico, o pedreiro, a professora, a atendente, o eletricista, a advogada, o pai de família, a mãe dedicada, o avô, a avó, se antes éramos dispersos no tabuleiro da vida e ainda assim nos apoiávamos no que sabíamos ser. O que seríamos nós agora? Adolescentes sonhadores, sem empregos fixos, esperando salários melhores, oportunidades maiores, viagens pelo mundo?
Os diplomas já não são suficientes. Somos descrentes do sistema. Não pagamos a aposentadoria, não acreditamos em planos de carreira, achamos absurda a ideia de um laço que nos prenda a um só lugar. Temos o mundo, mas não temos nada. Temos a ideia, mas o gosto na boca parece amargo demais.
O século da paz exterior segue a se transformar na era do inferno interior. Relações rachadas soam no som estridente dos sinos da liberdade que, por sua vez, traz a liberdade dos outros que podem simplesmente abdicar de nossa companhia: eles não são nossos e nós não somos deles.
Se o futuro sempre foi alarmante, hoje temos o presente como presságio. Milênios de tradição que queimam. Paredes sólidas por séculos que sucumbem aos novos tempos em que as promessas parecem mais reais do que o próprio presente.
E não se trata de ter medo do futuro, porque o futuro é hoje – e é exatamente como se previa. É isso que assusta.