Paixão por história(s)

Além do enoturismo e da gastronomia farta, o que une os atrativos espalhados pelas cinco rotas de Bento Gonçalves é a valorização das raízes históricas. Se a economia do município se desenvolveu, em grande parte, graças à visão dos descendentes de italianos, o crescimento do turismo também deve muito de sua força ao empreendedorismo familiar, àqueles que enxergaram na sua propriedade um grande potencial a ser explorado. Mais do que apenas ganhar dinheiro, muitos se abriram à atividade turística pela paixão e pelo orgulho de preservar as tradições e passar a sua história adiante.

“História é a nossa parte principal, o produto é consequência”, resume Maristela Pastorello Lerin, da Casa do Tomate (Il Cantuccio Del Pomodoro e Della Gasosa), nos Caminhos de Pedra. Dá para sentir em cada uma das apressadas palavras da professora aposentada o orgulho que ela carrega ao contar para os visitantes a origem do distrito de São Pedro e do roteiro. Uma espécie de mapa, detalhando os pontos turísticos, estampa as paredes superiores da agroindústria que funciona na propriedade. No passado, as terras eram divididas em linhas, e foi ali, na Linha Palmeiro, que chegaram os primeiros imigrantes em 1875, vindos de Belluno, norte da Itália.

A história de um povo pode ser contada de diferentes maneiras. Nos Caminhos de Pedra, é a arquitetura a principal responsável por manter viva a memória e a herança cultural da colonização. Como o nome indica, a rota é famosa por seus casarões construídos com pedra basáltica, que se enfileiram ao longo da estrada principal. Muitos ainda preservam a estrutura original. Maristela conta que, antes de vir para o Brasil, os imigrantes, em sua maioria camponeses, sonhavam com grandes castelos. Ao chegar aqui e encontrar basalto em abundância, transformaram o sonho em realidade. “Queremos que os visitantes de todo o país encontrem aqui uma pequena Itália dentro do Brasil”, comenta.

Entre as histórias que Maristela gosta de contar, está a da fabricação da gasosa, refrigerante natural produzido pelas famílias em ocasiões especiais, como Natal e Páscoa, e conservado nos porões de pedra. Antigamente, a bebida era utilizada pelos rapazes nas festas para conquistar as damas. Aceitar tomar uma gasosa era o sinal positivo para o início do namoro. Se a moça não se interessasse pelo pretendente, dizia não ter sede. Caso aceitasse a bebida e rejeitasse o rapaz, seria difamada nas redondezas.

A Casa do Tomate resgatou a tradição e comercializa o produto nos sabores limão, abacaxi e laranja. A receita leva água, açúcar, suco de limão e a casca da fruta que dará o seu sabor. Depois de fermentar, a bebida é coada e envasada. Uma delícia, assim como os molhos, extratos, geleias e conservas de produção própria. As receitas vêm dos visitantes ou das viagens que os proprietários fazem. “Vejo tomate até em pedra. Costumo dizer que eu e o tomate nos entendemos”, brinca Maristela.

Uma viagem no tempo

Quem também compartilha o mesmo amor por contar histórias é o empresário Moysés Michelon, do Hotel Villa Michelon, no Vale dos Vinhedos. Com seu jeito brincalhão e falante, ele faz questão de contar pessoalmente aos turistas mais interessados detalhes da fundação do distrito e da criação do roteiro, que hoje é o mais visitado do município. Uma das atrações do complexo é a Casa do Filó, que proporciona uma verdadeira viagem no tempo. O espaço pode ser descrito como um centro de lazer e convivência que revela a caminhada dos imigrantes italianos na região. No interior da casa, 150 fotografias antigas das famílias que desbravaram o distrito recobrem as paredes. Duas vezes por ano – durante a abertura da vindima, em janeiro, e nas comemorações do Dia do Vinho, em junho -, o Villa Michelon relembra os filós de antigamente, em um encontro aberto aos hóspedes e à comunidade.

A tradição surgiu ainda na Itália, para repartir comida, calor e economizar a lenha usada para fazer o fogo que aquecia as longas noites de inverno. A palavra filó origina-se do trabalho artesanal de fiação que as mulheres faziam nestes encontros. De um lado, ficavam os homens, que jogavam e tratavam de negócios; do outro, as mulheres, que trocavam receitas enquanto se dedicavam a trabalhos manuais.

No Brasil, o filó também servia para diminuir a solidão e a saudade da pátria e dos familiares. Tudo iniciava com a reza do terço. A fé e a religiosidade, aliás, eram marcas fortemente presentes na vida dos primeiros imigrantes. A primeira construção de cada comunidade costumava ser justamente uma capela – muitas ainda preservadas. Entre as mais conhecidas, está a de Nossa Senhora das Neves, na linha 6 da Leopoldina, que, segundo a história, foi construída com vinho misturado ao barro e à palha trigo em um período de estiagem na região.   

Um resgate da identidade

No distrito de Tuiuty, também é possível dar uma espiadinha no modo de vida dos primeiros imigrantes. O andar superior do casarão comprado pela família Cainelli, em 1929, abriga um museu interativo, onde se pode percorrer os cômodos e vivenciar os hábitos e costumes dos primeiros moradores de Bento Gonçalves através de diversos objetos e fotos da família e outras doações da comunidade. É um convite ao passado. “Cada pedra colocada aqui veio com muito sacrifício e muito trabalho. O museu é uma forma de mostrar a nossa história e resgatar a nossa identidade”, lembra Bernardete Cainelli.

A casa tem características europeias, típicas do Norte da Itália. São três pavimentos, sendo o porão de pedra, geralmente usado como cantina, e os andares superiores em madeira. A frente da casa não é voltada para a rodovia; fica no lado oposto, onde passava a Buarque de Macedo, primeira estrada de rodagem que ligava a colônia Dona Isabel a São João do Monte Negro, atualmente Montenegro.

A frase estampada nas rolhas da Vinícola Cainelli exprime o que a família quer transmitir aos visitantes: “Bem-vindo ao nosso mundo”! “Queremos mostrar toda a história que existe por trás de uma garrafa de vinho. Ela é fonte de muitas noites mal dormidas, lágrimas, mas também de sorrisos. Nossos antepassados não foram tão felizes quanto a gente. Eles trabalharam muito para construir o que temos hoje. Eles eram muito mais empreendedores do que nós. Vivemos em cima do que eles construíram”, observa o enólogo e administrador da vinícola, Roberto Cainelli Júnior, da quinta geração da família que veio da região do Tirol, em 1880.

Uma paixão comum aos jornalistas é a de ouvir – e contar – histórias. Mais do que escutar os relatos, gosto de interpretar as emoções e sentimentos por trás de cada palavra. Embora a história da colonização faça parte da nossa grade curricular, é esse contato com o passado ainda preservado que faz despertar o respeito e a admiração por aqueles que nos antecederam. Parafraseando Ruy Barbosa, sinto saudades do que não vivi. Para uma geração que sofre ao esperar mais do que alguns segundos por uma resposta no WhatsApp, os imigrantes têm muito a ensinar. É só observar a transformação dos parreirais que bordam nossas paisagens para saber que tudo tem o seu devido tempo: tempo de plantar, tempo de colher. Hoje, colhemos o progresso que eles plantaram.

A série completa

07/08 – Comer, beber e recordar

14/08 – Gosto de saudade

21/08 – Do lazer ao progresso

28/08 – Paixão por história(s)

04/09 – Turismo para quem é daqui

*O SERRANOSSA foi um dos veículos convidados para a Press Trip de Inverno, promovida pela secretaria municipal de Turismo, em parceria com o Bento Convention Bureau e o Sindicato de Hotéis, Restaurantes, Bares e Similares da Região Uva e Vinho (SHBRS), com suporte do Laghetto Viverone Bento e operacionalização da Conceitocom Brasil.


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