Pandemia muda rotina e torna ainda mais desafiador trabalho de socorristas em Bento

Há mais de um ano, profissionais da área da saúde têm trabalhado de forma ainda mais intensa para atender a todos diante da pandemia do Coronavírus. Além daqueles que atuam diretamente em hospitais e unidades de saúde, os profissionais de atendimentos móveis de urgência e emergência entram em cena como verdadeiros super-heróis. Apenas no Samu de Bento Gonçalves, os atendimentos saltaram de, aproximadamente, 3.600 em 2019, para mais de 4 mil em 2020 – um aumento superior a 10%. No Corpo de Bombeiros, o crescimento foi ainda maior: de 560 atendimentos registrados entre janeiro e abril de 2020, o número saltou para 779 neste ano, cerca de 40% a mais. 

O aumento está relacionado, principalmente, aos atendimentos de pessoas acometidas pela COVID-19, o que se intensificou no início deste ano com a circulação de novas cepas. Conforme a equipe de Bento, também houve um aumento significativo de casos psiquiátricos, incluindo surtos e tentativas de suicídio, além do aumento da demanda com a chegada de mais uma viatura. “Estamos atendendo muitos pacientes jovens sem comorbidade. No começo da semana transportei uma mulher de 46 anos, sem nenhuma doença pré-existente, com mais de 90% do pulmão afetado. E estamos vendo isso direto”, comenta o coordenador médico do Samu de Bento, Thyago Anzolin Coser. 


Parte da equipe do Samu em Bento, da esquerda para a direita: Anderson Ramos, Leonardo Somacal, Moacir Stradiotti, Thyago Coser, Elenice Garcia e Ângela Rizzon Santos. Foto: Eduarda Bucco/SERRANOSSA

 

E para atender esses pacientes, a equipe precisou ampliar protocolos sanitários e se moldar diariamente às novas informações que chegavam sobre o novo vírus. “Precisamos aumentar os cuidados pessoais e a higienização das ambulâncias. Então toda suspeita que atendemos, precisamos descontaminar a viatura. Às vezes precisamos fazer isso umas cinco vezes ao dia. Também não podemos andar com o ar-condicionado ligado, sempre com as janelas abertas”, conta o condutor socorrista Anderson Sbardelotto Ramos. As medidas adotadas pelas equipes do Samu durante a pandemia ainda incluíram novos protocolos de reanimação e de intubação – processos que foram e seguem sendo moldados de acordo com as instruções dos órgãos competentes. “No começo foi bem difícil porque a gente não conhecia a doença. Mas fomos nos ajudando, somos uma equipe bem unida. Hoje já estamos mais acostumados, porque todos os dias atendemos um caso de COVID. Mas eu ainda tenho medo, porque o vírus está em mutação”, desabafa a técnica de enfermagem, Marilaine Alves Machado. 

Hoje, mesmo com o esquema vacinal completo (1ª e 2ª doses), os profissionais ainda temem serem contaminados, a exemplo de um colega que recentemente se infectou mesmo já imunizado. “A maioria dos profissionais que trabalham aqui tem pelo menos mais um emprego. E aí chega o fim de semana e, às vezes, apenas queremos sair para relaxar, mas temos a responsabilidade de nos cuidarmos, de não passarmos para nossos familiares”, comenta Marilaine. “E também temos que dar o exemplo à população, mostrar a importância do cuidado”, complementa a técnica de enfermagem Elenice Garcia. 

"Temos que nos doar 100%"

A equipe do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu) em Bento Gonçalves conta com 13 médicos, sete enfermeiros, nove técnicos em enfermagem e 12 condutores socorristas. Os plantões costumam ser de 12h diárias, nas quais todos os profissionais precisam ficar 100% do tempo em prontidão.  “A gente chega e, se ainda não tiver nenhum chamado, fazemos o check-list de tudo. Verificamos todos os materiais e equipamentos, medicações, as ambulâncias. Fazemos um trabalho contínuo de limpeza”, relata o coordenador médico Thyago Anzolin Coser. Na sequência, a equipe plantonista aguarda os chamados, os quais, das 8h à meia-noite, chegam por meio do sistema da regulação compartilhada – quando a ligação cai direto para o Samu de Bento, ao invés da central em Porto Alegre. O sistema é controlado pelo médico plantonista. “Quando entra um chamado, verifico primeiro se precisa de uma ambulância básica ou avançada, de acordo com a gravidade da ocorrência. Hoje temos duas ambulâncias básicas e uma avançada”, revela o médico. A média é de 12 chamados por dia, com duração de cerca de 1h, contando o deslocamento. “Há chamados mais simples, quando resolvemos o problema no local da ocorrência mesmo, que levam cerca de 15 minutos, outros que duram até duas horas. Também fazemos o transporte de pacientes para outros hospitais da região, o que pode demorar até seis horas”, relata.


Coordenador médico Thyago Anzolin Coser conferindo os chamados no sistema de regulação compartilhada. Foto: Eduarda Bucco/SERRANOSSA

 

Além do Samu de Bento, Thyago atua no Samu de Caxias do Sul, no Hospital Geral, no Hospital Pompeia e, ainda, ministra aulas para o curso de Medicina da Universidade de Caxias do Sul. “Aqui no Samu é uma rotina bem agitada, na qual temos que nos doar 100%. Temos hora para chegar, mas não temos hora para sair”, revela. 

Questionado sobre o motivo da escolha do cargo, o coordenador médico do Samu de Bento conta que sempre gostou de trabalhar com urgência e emergência – o primeiro caracteriza atendimentos graves, mas que ainda têm um tempo para atendimento e, o segundo, atendimentos de extrema gravidade. “Eu sempre digo que, diferentemente daquele paciente que procura uma consulta com um especialista, o paciente de emergência está entre a vida e a morte. Ele não quer estar lá, mas eu quero. Eu quero estar lá para o ajudar e dar o meu melhor. Ser resolutivo. Dar uma chance de vida, mesmo que muitas vezes o desfecho seja negativo”, declara. O mesmo sentimento é compartilhado pela enfermeira Ângela Rizzon Santos. “Desde a época da faculdade eu já tinha tendência de gostar mais de urgência e emergência. É uma coisa que fascina. Fiquei oito anos no antigo PA, antes da UPA. E já ficava na parte de urgência e emergência. Depois eu me especializei nessa área e comecei a trabalhar com o Samu, e aqui eu sou realizada”, afirma. 

Além do amor pela profissão, a equipe de socorristas do Samu também se destaca pelo companheirismo. “Todos sabem o que fazer na hora do atendimento. Cada um tem a sua função e todos colaboram como se estivessem em uma orquestra”, comenta Thyago. “É muito gratificante”, complementa. 


Foto: Eduarda Bucco
 

Apelo à população 

Trabalhando com dedicação e comprometimento, para a equipe do Samu toda a vida importa. “Toda pessoa é o amor de alguém”, pontua o coordenador médico. E toda essa doação dos socorristas pode ser recompensada pela população, principalmente em um momento de pandemia. “Vimos nos últimos dias um movimento muito grande nas ruas. E isso vai se refletir daqui algumas semanas. As UTIs continuam lotadas, continuam aparecendo pacientes graves, pacientes que ficam com sequelas após o tratamento da COVID-19. Então a gente pede que o pessoal continue se cuidando”, ressalta Thyago. 

Além dos cuidados, a equipe instrui a comunidade para que, na hora de discar o 192, repasse todas as informações importantes, como possíveis sintomas da doença. “Muitas vezes os familiares não passam todas as informações e, quando chegamos ao local, a pessoa está com sintomas da COVID. E aí a equipe não vai preparada e acaba perdendo alguns segundos valiosos para se aparamentar”, relata a técnica Elenice. Outra questão diz respeito à avaliação da necessidade do chamado. A recomendação é que, se a família tem condições de deslocar o paciente até o hospital por conta própria, diante de uma situação de menor gravidade, o faça. “Pessoal tem que entender que se não houver necessidade da ambulância naquele momento, outra pessoa na cidade pode ficar sem atendimento e pode estar entre a vida e a morte”, explica Thyago. Mesmo assim, o médico afirma que o número 192 está à disposição não apenas para o envio de ambulâncias, como também para orientações. 

O coordenador médico finaliza alertando a comunidade sobre a importância de manter os cuidados, mesmo após a vacinação. “A vacina não é garantia de imunidade permanente. Os próprios laboratórios dizem que, depois de seis meses, não se tem certeza sobre os anticorpos. É um vírus totalmente diferente do que estamos acostumados a trabalhar. Antes tínhamos a ideia de potencial piora do quadro entre o 7º e o 10º dia, agora já vimos casos de pacientes instabilizando 20 dias depois dos primeiros sintomas. E a piora é muito rápida. Então, redobrem os cuidados, a situação ainda não está controlada”, conclui. 

Parceria que salva vidas


Soldado Cintia, Sargento Carvalho e Soldado Toillier, que atuam na equipe de resgate do Corpo de Bombeiros de Bento. Foto: Eduarda Bucco
 

Outra equipe essencial no atendimento de casos de urgência e emergência é o Corpo de Bombeiros Militar. Em Bento Gonçalves, os dois serviços atuam de forma conjunta em muitos dos chamados, formando uma parceria fundamental para salvar vidas. 

Os bombeiros são especializados em resgates e auxiliam a equipe do Samu em casos como acidentes de trânsito e acidentes com risco de explosão, por exemplo. “A rede do Samu é responsável pelo atendimento pré-hospitalar. Os bombeiros têm o ‘plus’ do salvamento e resgate. Eu vou chegar ao local  de um acidente de trânsito, por exemplo, e encontrar uma pessoa presa às ferragens. Então a gente vai fazer a remoção daquelas ferragens e, posteriormente, encaminhar para a equipe do Samu”, explica o comandante do pelotão de Bento, tenente Germiniani.  

Diante da pandemia, a demanda da corporação de Bento também aumentou. Com o maior deslocamento do Samu para emergências ligadas à COVID-19, a demanda de outras ocorrências precisou ser suprida pelos bombeiros. “Temos dois atendimentos básicos, o de resgate e o do caminhão de incêndio. São duas guarnições separadas, mas na prática, atendemos juntos”, explica o sargento Carvalho, que, entre outras funções, atua como motorista da viatura de resgate. 

O plantão dos bombeiros é de 24h, com uma média de seis atendimentos diários. Além da demanda ter aumentado por conta do maior número de chamados para o Samu, os bombeiros comentam que outras ocorrências também tiveram aumento no período da pandemia, como o número de acidentes envolvendo motoboys. Diante do trabalho ininterrupto, o protocolo de cuidados para evitar o contágio pelo Coronavírus também se faz necessário 100% do tempo. “Os protocolos foram confeccionados pelo Corpo de Bombeiros do RS para evitar surtos, mas contaminações individuais ocorreram”, revela o tenente Germiniano. 


Foto: Eduarda Bucco
 

Dessa forma, além de se doar para salvar os pacientes socorridos e evitar contaminações durante o trabalho, a equipe ainda precisa manter os cuidados dentro de casa. “Muitos de nós têm filhos, idosos em casa e precisamos manter o máximo cuidado possível. E isso requer mecanismos de defesa até para evitar um impacto psicológico. Precisamos conversar mais para suprir a falta de abraços e de contatos físicos”, comenta o tenente. 

Dessa forma, assim como a equipe do Samu, os bombeiros também pedem auxílio da comunidade para garantir a segurança de todos. “As pessoas precisam nos informar se estão infectadas, se tiveram contato com alguém contaminado ou se têm alguém com o Coronavírus no ambiente da casa. Às vezes as pessoas acabam omitindo por receio de não ser atendido, mas serão atendidos sim”, afirma a soldado Cíntia, que também atua na viatura de resgate. “Toda vez que transportamos um paciente COVID, precisamos fazer a descontaminação e isso demanda tempo. E às vezes não conseguimos atender com rapidez o próximo chamado.  Então, quando possível, que a pessoa se desloque por meios próprios. Essa é a melhor maneira de evitar essa contaminação”, finaliza o sargento Carvalho.