Prazer, tia do churros
Diz que é de Bento, mas não conhece a “tia do churros”? A frase bem que poderia fazer parte da brincadeira que circulou pelas redes sociais recentemente convidando os internautas a lembrarem de situações marcantes de cada localidade. Há 19 anos, o carrinho estacionado sobre a calçada, bem no coração da cidade, é onde Sueli Francescatto, de 66 anos, encontra a sua realização profissional. “Eu gosto muito do que eu faço, porque é uma coisa diferente”, garante.
É dela a única barraca onde a massa frita recheada com doce de leite é comercializada. O negócio iniciou em 1999, na quinta-feira Santa (uma consulta ao calendário da época revela que era dia 1º de abril). A máquina e a receita continuam as mesmas. A única mudança foi no tipo de gordura – a vegetal deixa menos cheiro e não atrapalha tanto o comércio ao redor – e na variedade de recheios: o doce de leite ganhou a “concorrência” da goiabada e chocolate (o preferido da criançada).
Natural de Antônio Prado (RS), Sueli carrega no sangue o amor pelo comércio: o avô era dono de um moinho – hoje ponto turístico – e o pai mantinha uma pequena venda. Ao longo dos anos, ela colecionou tentativas fracassadas de abrir um negócio próprio em outras cidades e Estados. Antes de iniciar a empreitada que mudaria o rumo de sua história, Sueli comandava as máquinas de sorvete na lancheria do irmão, na Via Del Vino. O plano era juntar dinheiro para depois buscar novamente a sorte na capital vendendo lanches na rua, mas surgiu o convite para assumir uma carrocinha de pipocas a poucos metros de onde trabalhava. Ela aceitou. Ao ver que a guloseima não fazia tanto sucesso, decidiu inovar e apostar nos churros, ainda inéditos em Bento.
A missão era encontrar uma máquina que não atrapalhasse a circulação dos pedestres. Além de atender às exigências, o equipamento escolhido ainda trazia uma receita do churros na gaveta. Com apenas uma colher de margarina para cada quilo de farinha, esta foi a aposta de Sueli – a expectativa era por um doce menos gorduroso do que a versão que ela havia provado em Caxias do Sul (onde ainda mantinham os ingredientes em segredo). Foi sucesso imediato. Com o dinheiro, Sueli conseguiu ajudar nos tratamentos de saúde da família e se estabelecer. “Eu estava na pior, isso foi a minha salvação”, revela.
Dificuldades
Embora estar na rua seja sua paixão (especialmente pelo contato com o público), Sueli sonha em se mudar para um local fechado em função das condições climáticas. O sol castiga no verão, enquanto o vento do inverno é congelante para quem trabalha ao ar livre. Nos dias em que São Pedro manda uma garoa fina, ela consegue manter o negócio funcionando mas, quando o céu prenuncia a chegada de uma tempestade, ela prontamente se recolhe.
A vida de Sueli gira em torno do trabalho e dos cuidados com uma tia, de 85 anos, que mora com ela em um apartamento alugado na mesma rua em que trabalha. A localização estratégica é proposital. Ali ela pode guarda a máquina com facilidade e repor algum ingrediente nos dias de alta nas vendas. O único porém é a ausência de elevador, o que castigou os seus joelhos com o vai e vem na companhia de caixas e baldes pesados com a matéria-prima. Ao lado do carrinho, um banquinho ajuda a descansar a perna – ainda em recuperação após uma operação no menisco. O restante do corpo também sente as dores do ofício, em especial o ombro, bastante requisitado no trabalho com a massa (a parte mais complicada da rotina): ela é cozida antes de ser sovada e moldada, etapas executadas imediatamente após sair do fogão.
A receita original leva um quilo de farinha e precisou ser duplicada no início. Hoje, é multiplicada por cinco. Para aliviar a carga, Sueli comprou maquinário específico para alguns processos e três vezes por semana conta com ajuda de uma senhora na preparação da receita. Como não quer que a ajudante sofra com as mesmas dores, Sueli ajuda com o pagamento de aulas de pilates. O ar solidário e sua simpatia, aliás, são diferenciais do negócio. Se algum cliente reclama de uma dor de cabeça, ela prontamente se oferece para ir até em casa buscar um comprimido.
Vendas
Na época de pagamento, Sueli chega a vender entre 150 a 250 churros por dia. No restante do mês, o movimento baixa para menos de 100 – ao invés de um doce para cada pessoa, muitos clientes optam em comprar apenas um e dividir. É reflexo da crise. “Tá sinistro, dia 11 as pessoas já não têm mais dinheiro”, reflete. Para não prejudicar as vendas, há três anos o preço não é reajustado: segue em R$ 4. A maior dificuldade é durante a troca das estações, já que com a alta nos termômetros, a clientela geralmente migra para o sorvete. Nessa época, já chegou a vender apenas 17 churros em um único dia, quando a unidade ainda custava R$ 1 cada.
Para diversificar o negócio e atrair mais clientes, Sueli está em fase de testes com uma versão salgada. A ideia é uma espécie de queijo cremoso para o recheio. O único porém é que amolece por estar acondicionado próximo à panela de fritura. A tática será misturar outros queijos até acertar no ponto. A aposta é que a novidade tenha boa saída no verão. “Enquanto eu estiver viva vou continuar. Não tem essa de parar porque se aposentou. Não consigo mais ficar em casa olhando para o nada”, confessa.
Rotina
No início eram 12 horas diárias de trabalho. Hoje, por recomendações médicas, ela faz uma pausa para o almoço – a alimentação de mais de 15 anos à base de sanduíches e lanches apontou alterações nos exames de sangue. Ela ainda trabalha de segunda a segunda, mas conta com uma ajudante para lhe substituir quando precisa ir a médico ou resolver problemas particulares. Sueli ainda fica a maior parte do tempo no comando das máquinas. A funcionária assume a função de caixa à tarde – quando o movimento é maior – e se encarrega sozinha da barraca apenas ao final do dia.
Por ser cozida, a massa precisa ficar mais tempo na fritura. Sueli gosta de deixar os churros em diferentes temperaturas à espera do recheio. Ela evita servir logo que tira da gordura, seja para que os clientes não se queimem, como para evitar azia (o que aprendeu com os testes feitos ao longo dos anos – “no começo eu vivia de churros”, lembra). O cuidado também se faz necessário para que “seus baixinhos” não se queimem a cada mordida.
Os baixinhos
Sueli não é casada e também não tem filhos, mas é como se todos os pequenos clientes, ávidos por seus churros, assim o fossem. “Ser a ‘tia do churros’ é a melhor parte, pela inocência das crianças. Aqueles olhinhos me olhando me fascinam. É como se estivesse dando um churros para um filho meu”, conta, emocionada.
No início, por desconhecer o ramo, Sueli não sabia que os doces faziam tanto sucesso com a criançada. Após ausentar-se por alguns dias para cuidar de um parente hospitalizado, viu que a mulher que a substituiu no período dava mais atenção às crianças do que aos adultos. Decidiu adotar a tática. Como os pequenos não comiam tudo, os pais abocanhavam o restante e também começaram a gostar.
Com orgulho, Sueli conta que algumas mães vieram lhe dizer que para os filhos o seu churros é melhor do que as versões mais incrementadas e comuns em festivais gastronômicos. “Os baixinhos me querem. E não quero deixar ninguém em falta. Se eu não estou, eles perguntam ‘cadê a tia?’”, observa.
Na época de pagamento, Sueli chega a vender entre 150 a 250 churros por dia (Foto: Carina Furlanetto)
Esta é a 71ª reportagem da Série “Vida de…”, uma das ações de comemoração aos 10 anos do SERRANOSSA e que tem como objetivo contar histórias de pessoas comuns, mostrando suas alegrias, dificuldades, desafios e superações e, através de seus relatos, incentivar o respeito.