Rappers cantam sobre preconceito e realidade das vilas: “Nunca olharam para cá”

Desde o seu surgimento, o rap tem sido utilizado para retratar diferentes realidades, principalmente aquelas das comunidades mais vulneráveis. Hoje, apesar da maioria dos cantores populares adaptarem suas letras e melodias à demanda comercial, há quem ainda explore a essência do estilo musical, entretendo e, ao mesmo tempo, levando uma mensagem importante à sociedade. E foi com a necessidade de falar sobre a realidade das vilas de Bento Gonçalves que os rappers Raikiri (André Almeida, de 22 anos) e Dree (Edgar Mattos, de 26 anos) lançaram a música e o clipe “Pelas Ruas Daqui” no dia 25/04.


Cantores Dree e Raikiri. Foto: Pablo do Rosário
 

Os dois cantores cresceram em periferias, vivenciando diariamente as dificuldades de morar em locais esquecidos pela sociedade e pelo Poder Público. “Nunca olharam pra cá, não pula arapuca de lida rapa, becos e vielas eu trago na vida, sou cria da vila e não vou fraquejar!”, canta Raikiri. Conforme os rappers, em comunidades aonde as drogas e as armas chegam antes que os livros, entrar na criminalidade pode parecer a única forma de crescer na vida. “Tem jovem que trabalha desde criança para ajudar no sustento da família e vê os pais se esforçando para garantir a refeição do dia. E mesmo assim a família não consegue dar a vida ‘da hora’ que eles queriam”, comentam os rappers. “E aí a galera vê aquele cara que tem grana, que está sempre com um carrão ‘da hora’, que os filhos têm uma bike massa, e que não fazem nada. Isso acaba atraindo os jovens”, continuam. 

A batalha diária por uma vida melhor também foi realidade na família dos rappers. Dree cresceu na Vila dos Eucaliptos, onde o clipe foi gravado. Aos sete anos já ajudava seu pai em obras e, mais tarde, passou a vender picolé pelas ruas do município. “Minha casa era um barraco de madeira. Passava esgoto no lado e na frente”, recorda Dree. Raikiri nasceu em São Borja, também em um bairro de maior vulnerabilidade social. Quando veio a Bento Gonçalves, ainda criança, vivenciou a realidade da periferia daqui. “Quantas vezes minha mãe não tinha nem R$ 0,50 para a gente comprar um salgado no mercado. Eu estudava e ‘trampava’ o dia inteiro, fazia SENAI [Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial], chegava em casa e via meu padrasto e minha mãe ‘trampando’ força, para chegar no fim, pagar todas as contas e ter arroz para comer. Só quem passa por isso sabe”, conta o rapper.


Foto: Eduarda Bucco/SERRANOSSA
 

Apesar das dificuldades e do contato com pessoas envolvidas com a criminalidade, os rappers encontraram na cultura hip hop uma motivação. Dree se aproximou verdadeiramente da música por meio do rap gospel. As visitas a igrejas iniciaram após um momento de descrença e muita dificuldade em sua vida. Afastado da família e enfrentando a dor da perda de um amigo, o cantor buscou em Deus a força para seguir seu sonho. “Ver vários partindo bem antes do tempo e os que não ‘morreu’ nós ‘mesmo’ viu cair”, canta Raikiri como lembrança aos amigos e conhecidos que foram vítimas da pior faceta do crime. 

Já o cantor Raikiri é admirador do rap desde criança. Aos 13 anos, ele começou a participar das batalhas de rima em Bento. Hoje, aos 22, já esteve envolvido e/ou criou diversos projetos culturais para levar a cultura hip hop a mais jovens do município. 

Medo e preconceito

Assim como as demais favelas do município, a Vila dos Eucaliptos é vista com maus-olhos por grande parte da sociedade. Conforme retratado pelo cantor Dree, que cresceu e ainda vive na comunidade, apesar das notícias envolvendo a criminalidade, mais de 90% das famílias no local são compostas por pessoas trabalhadoras. “A questão do crime existe em qualquer outro lugar. E mesmo assim sofremos muito preconceito de quem mora em bairros mais favorecidos. Às vezes, quando tem feira, por exemplo, é vantagem entrar pelos Eucaliptos e sair no Barracão, mas as pessoas não entram porque têm medo”, comenta. “Eu tinha uma barbearia na parte debaixo da minha casa. Eu postava meus trabalhos nas redes sociais e os caras queriam cortar o cabelo comigo. Então eu dizia que meu negócio ficava nos Eucaliptos, e nunca rolava. Sempre cortei o cabelo de clientes aqui do bairro, era raro vir alguém de fora”, exemplifica. 


Foto: Eduarda Bucco/SERRANOSSA
 

Na opinião dos rappers, a sociedade apenas volta seus olhos para a periferia quando esses locais são noticiados como cenas de crimes, prisões ou apreensões. “As pessoas só olham para as coisas negativas, mas tem muita coisa positiva. Tem gente que ‘trampa’ muito, que faz arte, que escreve, que tem seu mercadinho na esquina”, comenta Raikiri. “E a ideia da música foi essa, fazer a galera olhar para cá e dizer: não é só isso. Tem a beleza, a essência do lugar. Quem quiser passear por alguma vila, pode vir que tá sereno. Quem mora na periferia sabe que a gente tem muito apreço um pelo outro”, revela. 

Influência positiva

“Pega no livro e foca na sua vitória”, cantam. Além de lutar contra o preconceito, os rappers tentaram, por meio da música, levar uma mensagem de inspiração para os jovens que vivem em situação de vulnerabilidade social.  “No clipe encenamos que estávamos traficando livros justamente para mostrar o quanto é difícil ver algo envolvendo os livros em bairros de periferia. Não tem nenhuma iniciativa cultural, nada ligada ao Poder Público. Algumas pessoas, como o pessoal da Nest Panos, vêm aqui por acreditar nas pessoas que moram aqui”, analisa Dree. 


Foto: Eduarda Bucco/SERRANOSSA
 

E a mensagem parece já estar surtindo efeitos. “Teve uma pessoa que parou na rua e disse que nossa música vai servir como tema de uma palestra no Senai”, conta Raikiri. “Eu decidi abraçar a arte, então é esse tipo de influência que eu quero ser para as crianças e jovens”, continua. 

Trabalhando durante horário comercial e buscando incentivo e aprimoramento nas horas vagas, os rappers projetam um futuro simples, mas significativo na música. “Eu tenho certeza que nasci para isso. Quero lutar contra o preconceito. Quero incentivar mais crianças a estudarem, cantarem, dançarem…”, diz. “Eu não tenho que fazer alguma coisa para ir junto com a massa, essa é a ‘parada’ da cultura. Tu vê o que está errado e se opõe a isso, bate de frente para tentar corrigir. É uma zona de conflito”, analisa. 

A fala de Dree na música finaliza com uma mensagem a todos os jovens que um dia já pensaram em se envolver com a criminalidade: “Não vai na pilha que esse filme eu já assisti”. “O crime não compensa, é isso que queremos passar. Queremos quebrar com todo esse preconceito e mostrar para os jovens que é possível vencer na vida pelo caminho certo. E queremos trazer as pessoas para a periferia, trazer a cultura para cá para dar diferentes oportunidades aos jovens”, encerra.