Reforma irá sucatear serviços públicos e facilitar corrupção, avaliam servidores
Ao longo das últimas semanas, entidades, sindicatos e servidores públicos têm realizado uma série de manifestações on-line e presenciais contra a proposta de Reforma Administrativa (PEC 32), que altera regras para futuros servidores. Conforme o governo, o intuito é "melhorar o desempenho dos serviços e o atendimento à população", além de "cortar gastos".
Pertencente à diretoria do Sindicato Nacional dos Servidores Federais da Educação Básica e Profissional (SINASEFE) Seção Bento Gonçalves, a técnica administrativa Vanessa Soares de Castro, entretanto, aponta uma série de aspectos da proposta do governo federal que a tornam “um verdadeiro retrocesso” na visão de sindicatos da educação e de outras áreas do serviço público municipal, estadual e federal.
Um deles diz respeito aos novos vínculos empregatícios estabelecidos, que iniciam com a ameaça da estabilidade. “A estabilidade do servidor público municipal, estadual e federal é uma garantia de que ele estará a serviço da população, tendo condições e segurança para denunciar qualquer situação de ilegalidade cometida pelo gestor público”, comenta. A proposta da PEC é criar cargos por “vínculo por prazo determinado” e por “vínculo de experiência”, os quais, na visão da servidora, submeteriam os funcionários públicos a buscarem, sempre, agradar sua chefia para que não sejam demitidos. Atualmente, complementa, existem mecanismos de punição de servidores caso haja comportamentos corruptos ou uma prestação de serviço inadequada. “Ao mesmo tempo, a PEC cria a possibilidade de indicação de cargos de liderança que não passem por concurso, chamados “Contratos de Gestão”, ou seja, indicados pelo próprio governo, que podem ser preenchidos por apadrinhados, parentes, nomeados por interesses políticos, etc.”, expõe.
Sobre os vínculos por prazo determinado, Vanessa analisa que o cargo aumentaria a rotatividade e a precarização do trabalho, “tornando o atendimento à população pior, mais inconstante e instável”.
Ainda dentro do texto da PEC, a servidora destaca a proposta de exploração do patrimônio das instituições para geração de renda, além da ideia de firmar parcerias com empresas privadas para a execução dos serviços, estimulando a privatização das instituições. “Ao estimular a ‘gestão de receitas próprias’, [a PEC] cria um orçamento que não está sujeito às normas orçamentárias e financeiras gerais e que pode ser desviado e usado indevidamente de forma bastante simples”, analisa.
Outro ponto bastante criticado pelos sindicatos representantes dos servidores públicos é a manutenção das regras atuais para os cargos de alto escalão, como juízes, militares e políticos. “Além de trazer esses problemas, a contrarreforma não atinge aqueles que de fato recebem altos salários, piora a situação dos servidores já mais vulnerabilizados, acabando com os planos de carreira, progressões e licenças, não traz nada de novo ou que de fato beneficie a população”, diz Vanessa. “Ela não só não melhora nada, como é um retrocesso, propondo um retorno a um momento da história brasileira quando não havia transparência e a ocupação de cargos públicos se dava por indicações e interesses políticos. Ou seja, sendo aprovada, a PEC atingiria servidores/as da escala mais vulnerável, que atendem diretamente a população e fazem com que as políticas públicas cheguem até as pessoas, piorando drasticamente o atendimento ao povo e a execução dos serviços públicos de forma geral”, complementa.
Início das discussões
Conforme o professor do Mestrado em Psicologia e Doutor em Ciências Políticas da Universidade de Caxias do Sul (UCS), João Ignácio Pires Lucas, a discussão sobre a necessidade de uma reforma administrativa surgiu ainda no governo de Fernando Henrique Cardoso, em 1995. Na ocasião, foi criado um ministério voltado para a proposta de reforma do estado, tendo como ministro o economista Bresser Pereira. “O objetivo era trazer aqueles princípios de eficiência, de gestão por resultado”, relembra.
Segundo o professor, naquela época grupos neoliberais passaram a questionar a eficiência do conceito “de bem-estar social”, que vê o Estado como uma instituição que tem por obrigação organizar a economia do país e ofertar aos cidadãos o acesso a serviços básicos, como saúde, educação e segurança. “Essa discussão acerca da reforma gerencial acabou diminuindo de intensidade nos anos 2000, até com a própria crise do neoliberalismo e a necessidade de retomada ou de criação de um Estado mais atuante na esfera social”, explica. Mesmo assim, ele analisa que essa “cicatriz” se manteve nas décadas seguintes.
“No caso do Brasil a discussão sempre foi enviesada na questão dos privilégios de determinadas carreiras, jurídicas, aquelas do próprio Estado e até mesmo os militares que são intocáveis, sobrando para o servidor público, sempre vitimados pelos cortes de salário, enxugamento e com a política não muito frequente de aumento de salário”, comenta.
Na análise do professor, a questão da reforma sempre esteve atrelada a setores mais conservadores. Além disso, ele comenta que há setores privados interessados em áreas lucrativas, hoje ocupadas pelo serviço público. “Há uma visão negativa de alguns setores, sempre querendo sucatear, privatizar o Estado Brasileiro, com a justificativa de que o Estado seria inchado e inoperante”, explica. “Quando na verdade é ao contrário. O Estado sempre foi boicotado, teve uma série de restrições. O Brasil tem uma das menores dívidas públicas, porque nunca se investiu em saúde e educação de verdade”, continua.
Em relação à visão do servidor público “como um inimigo nacional”, o professor acredita que ela tenha surgido a partir da época da ditadura. “Essa visão nunca soube entender que, ao contrário do que é falado, o servidor público seria a principal ferramenta para o exercício da cidadania e dos direitos. Em relação à saúde, à educação, à segurança e ao transporte”, cita.
Mobilizações
Apesar de alguns pontos criticados já terem sido retirados da reforma, o SINASEFE afirma que o objetivo das mobilizações feitas em todo o Brasil é barrar a proposta, tendo em vista os demais aspectos citados. “Enxergamos que, mesmo que haja melhorias a serem feitas no serviço público, elas precisam ser discutidas amplamente, com a população esclarecida não só dos problemas como das formas de solucionar e melhorar os serviços públicos”, analisa a servidora do IFRS Vanessa Soares de Castro.
Por conta disso, o sindicato tem promovido campanhas direcionadas, primeiramente, aos próprios servidores. “Também temos buscado informar a população. Em nossas campanhas de doação de alimentos começamos a enviar junto um material informativo”, cita. O SINASEFE também tem apoiado campanhas mais amplas promovidas por outras instituições representativas do funcionalismo público. “Além disso, apoiamos e compartilhamos ações de movimentos importantes que visam pressionar os/as deputados/as e senadores/as para que votem contrariamente à reforma, enviando a eles mensagens cobrando seu posicionamento contrário a esse retrocesso”, continua.
Fotos: Divulgação/SINASEFE