“Responder, discutir e brigar na internet não alivia o descontentamento”

Relatos de conteúdos ofensivos e preconceituosos têm sido cada vez mais recorrentes nas redes sociais, principalmente quando o assunto se refere à política e ao cenário de pandemia no Brasil e no mundo. Em abril deste ano, uma estudante gaúcha, que prefere não se identificar, conta que decidiu se manifestar sobre a atuação do então participante do Big Brother Brasil (BBB) Rodolffo, durante mobilização popular para eliminar o candidato por comentários homofóbicos e racistas. “Rolando o Instagram, vi uma postagem sobre ele e comentei que ele era apoiador do presidente Bolsonaro, algo que ele mesmo já postou sobre e apoiou a candidatura em 2018”, conta. 

Após o comentário, a estudante relata que recebeu uma série de mensagens de cunho ofensivo, de pessoas que se diziam apoiadoras do presidente. “Eu senti medo, porque foi um comentário comum, muitas pessoas estavam comentando o mesmo”, recorda. O episódio levou a estudante a bloquear o seu perfil e a mudar seu comportamento nas redes sociais. “Hoje eu não comento mais nada nesses perfis, apenas em locais com uma bolha, tendendo ao que eu acredito, para não receber comentários ofensivos”, revela. 

Uma dançarina de hip hop de Bento, de 21 anos, passou por situação semelhante. Há alguns anos, ela fez uma postagem em seu Instagram para um projeto de escola, falando sobre sua trajetória na dança e em sua vida pessoal. “Nesse vídeo eu relatei algumas vivências como mulher, e ideologias que eu acreditava”, conta. “Na legenda da publicação, tinha a seguinte frase: ‘a melhor forma de quebrar padrões é sendo mulher e dançando… ’ E eu realmente acredito nisso. Quando nós, mulheres, fazemos alguma coisa que não é comum, a gente é olhada com olhos de julgamento”, desabafa.  

A publicação desencadeou uma série de comentários preconceituosos, com julgamentos sobre como a dançarina se comportava e como se vestia. “Acho que a pior ofensa que alguém pode receber é sobre o que acredita e como deve ou não se vestir”, comenta. 

Quanto a esse tipo de comportamento, o psiquiatra do Hospital Tacchini, Rodrigo Tramontini, ressalta a importância das pessoas entenderem que “as agressões virtuais causam sofrimento real em suas vítimas” e podem desencadear transtornos psiquiátricos. “Também podem servir, inclusive, como gatilhos para comportamentos autoagressivos, suicidas e violência contra terceiros”, complementa. O psiquiatra ainda pontua que “responder, discutir e brigar na internet, em geral, não elimina ou alivia o descontentamento e costuma prolongar sentimentos negativos, aumentar a alienação do envolvido e reforçar a compulsão pelo uso da plataforma”. 


Psiquiatra Rodrigo Tramontini. Foto: arquivo pessoal
 

Há punição?

Crimes na internet têm se acentuado de forma expressiva nos últimos anos, levando a criações de setores e delegacias específicas para atender esses casos. No Rio Grande do Sul, a Delegacia de Polícia de Repressão aos Crimes Informáticos (DRIC/DEIC) é especializada nessa área e atende demandas de todo o estado. Conforme o delegado André Lobo Anicet, os crimes informáticos mais comuns podem ser divididos entre ‘próprio’ e ‘impróprio’. “O próprio é a invasão de dispositivo informático, quando tem ataque hacker. O segundo é relativo aos casos de estelionato e extorsão”, explica. 

Questionado sobre os conteúdos on-line considerados ofensivos, o delegado explica que, dependendo do caso, as pessoas podem, ou devem, registrar boletim de ocorrência. “Isso vai de cada pessoa, julgar se a mensagem é ofensiva ou não. Uma difamação vai ferir a honra objetiva da pessoa. A injúria, a subjetiva”, explica. 

A professora de direito penal da Universidade de Caxias do Sul, Giovana Cenci Zir, esclarece que a liberdade de expressão encontra limites quando os conteúdos expostos nas redes sociais geram algum prejuízo moral ou implicam em alguma violação da lei penal. “Dependendo do caso, então, pode haver repercussão na área cível ou pode haver a incidência em algum crime”, comenta. Nos casos dos crimes contra a honra – calúnia, difamação ou injúria – a pena pode ser ampliada quando forem praticados através de meios que facilitem a divulgação. “Inclusive, existe a possibilidade de punição na esfera penal de registro não autorizado da intimidade sexual ou ainda de divulgação de pornografia sem consentimento da vitima”, complementa. 


Professora Giovana Cenci Zir. Foto: arquivo/SERRANOSSA
 

O delegado André Lobo Anicet ainda cita o mais recente crime de perseguição, ou “stalking”, que prevê uma pena maior do que o crime de ameaça, “com causas de aumento de pena para determinados grupos, como mulher, criança, adolescente ou idoso”, diz. 

Apesar de não haver uma lei específica de comportamentos nas redes sociais, a professora Giovana Zir ressalta que qualquer postagem nas redes sociais deve ser feita com responsabilidade e respeito. “É importante não repassar conteúdos, nem acreditar em tudo que nos é enviado, sem que saibamos a fonte e a veracidade da informação”, pontua. 

Na opinião de Giovana, as manifestações de ódio pela internet podem se potencializar por conta da distância. “Se as pessoas estivessem na presença uma da outra, isso talvez não acontecesse”, analisa. A professora ainda reflete que a rede social pode se caracterizar como “uma extensão de si próprio e que, dependendo da sua manifestação, pode gerar consequências para si e para os demais”, continua. 

As armadilhas da internet

O psiquiatra Rodrigo Tramontini expõe que o uso excessivo das redes sociais está associado a diversos graus de sofrimentos psíquicos e de comportamentos disfuncionais, os quais podem se manifestar por meio de transtornos depressivos, ansiosos, alimentares, aditivos e de identidade, entre outros. Isso acontece porque, segundo o profissional, essas plataformas tornam o usuário dependente, tendo em vista que seu uso “ativa o chamado sistema de recompensa cerebral, responsável por sensações de prazer parecidas com as da alimentação, do sexo e da interação social real”, compara. 

Entretanto, Tramontini ressalta que essa sensação de satisfação seria “rápida e passageira”, fazendo com que a pessoa desenvolva um “comportamento compulsivo e imersivo que prejudica a forma como ela lida com seus sentimentos, com sua autoimagem e com seus relacionamentos”. Após adquirir esse comportamento, a pessoa estaria mais sujeita a utilizar o prazer momentâneo adquirido por meio das redes sociais, com o objetivo de eliminar sentimentos desagradáveis. 

“No decorrer desse processo, a exposição à vida, aos supostos sucessos alheios e à prática de cyberbullying geram comparações irrealistas com outras pessoas, aumentam sensações de inadequação, de insegurança e de desamparo, e provocam impressões de se estar excluído, privado e distante do melhor da vida”, alerta. Além disso, o psiquiatra ressalta que a interação nas plataformas pode provocar uma “supervalorização da autoimagem e das opiniões e visão de mundo do usuário e de pessoas do seu mesmo círculo de interesses”, tornando os usuários alienados e, até mesmo, agressivos em relação a outras opiniões e contextos. “Isso, em última análise, dificulta sua interação com o mundo real”, analisa. 

Dessa forma, Tramontini propõe uma redução no tempo de uso das plataformas digitais, mesmo diante da pandemia, que tem facilitado a interação social em um momento de distanciamento. “Estratégias como desativar notificações, deletar aplicativos, impor um limite máximo de tempo diário gasto nas redes e desativar perfis periodicamente e temporariamente podem ser úteis”, aconselha. “Também é recomendável que se evite o uso das redes sociais em momentos de estresse e de fadiga mental, que nos deixam mais sensíveis ao uso compulsivo e a todos os problemas expostos acima”, complementa. Ainda, o psiquiatra reforça a importância de se valorizar e priorizar as interações na vida real, “pois estas podem ser realmente satisfatórias e dar sentido à nossa existência”. 

Quanto às mensagens ofensivas e os ataques registrados no meio digital, o profissional acredita que a melhor forma de lidar com eles, seja os ignorando, bloqueando seus autores ou denunciando na própria plataforma. “Os agressores devem estar cientes de que podem sofrer bloqueios e restrições dos administradores da rede e de que suas mensagens podem servir de provas para eventuais processos judiciais. Muitas vezes, apenas uma punição concreta pode inibir ações desse tipo”, pontua. 
 

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