Série especial: a vida de Aramis Bez, que passou por um transplante de rim

Depois do dia 19 de fevereiro de 2016, o prazer de aproveitar um sábado de sol para passear ao ar livre com as filhas passou a ter outro significado para Aramis Bez, de 39 anos. Foi nesse dia que ele ganhou um novo rim. Mais do que estar livre das três sessões semanais de hemodiálise, com quatro horas de duração cada, ele passou a valorizar a vida. “Qualquer momento é o melhor do mundo: subir em uma árvore, ver o sol nascer. Antes era apenas mais um anoitecer ou mais um amanhecer. Hoje em dia, tenho um olhar mais detalhado para a vida”, comenta. 
Bez precisou submeter-se ao transplante renal por conta de uma nefropatia por IgA. Ele conta que foi somente após enfrentar o problema que entendeu a gravidade da situação. Foi o que lhe deu um “sacudão” e fez com que ajustasse o foco e se fixasse no realmente considera importante: a família. Casado há 10 anos com a professora Thais Milani Faccenda Bez, é pai de Valentina, de 5 anos e meio, e de Antônia, de 2 anos e meio. Ele conta que o apoio recebido em casa foi fundamental e que o abalo emocional da doença afetou também a filha mais velha – ela ficou mais chorosa, só queria brincar que era enfermeira. “Quando eu mudei depois do transplante, ela esqueceu todos esses problemas”, relata. 
A experiência lhe despertou o desejo de sair da mesmice e voltar a estudar. Formado em Administração com foco em Recursos Humanos, planeja ingressar na faculdade de Psicologia no próximo semestre. É uma forma de também tentar entender a si próprio. “De modo geral, a gente acha que é superpoderoso, que nada vai nos acontecer. Vai trabalhando para ter uma profissão, se destacar na empresa e ter estabilidade financeira para lá na frente usufruir de tudo o que plantou. Aí chega na metade do caminho e recebe uma ‘facada’ dessas. Filhos para criar, casa para manter, você perde todos os seus sonhos em questão de meses. A depressão bateu”, pontua. 

A descoberta da doença
Exceto algumas faltas de ar por conta de histórico familiar de bronquite, Bez sempre se sentiu bem, tanto que o primeiro exame de sangue que ele fez na vida foi somente aos 25 anos de idade, por exigência da empresa. Por conta da sua história, ele procura passar a mensagem sobre a importância de cuidar da saúde. “Doenças como diabetes, pressão alta e doença renal crônica são silenciosas. Os homens têm que quebrar o tabu de ir para médico e fazer exames. Ninguém está isento das doenças”, aponta. 
Há nove anos, durante um exame de rotina na empresa de transportes em que trabalha há 15 anos – atualmente ocupa o cargo de supervisor de monitoramento – descobriu alterações na glicemia em jejum, um indício de que havia desenvolvido Diabetes tipo 2 e que precisava fazer uso de insulina. A doença era um reflexo da falta de cuidados com a saúde típicos da juventude, como má alimentação e sedentarismo. 
Com o acompanhamento médico regular e os exames periódicos, ele descobriu também alterações na dosagem de creatinina no sangue. Como os índices só aumentavam, de forma preventiva sua nefrologista indicou a construção de uma fístula arteriovenosa no braço (junção de uma artéria com uma veia, que possibilita o aumento no fluxo sanguíneo) caso um dia precisasse submeter-se a sessões de hemodiálise. Uma biópsia nos rins diagnosticou a nefropatia por IgA. Sua creatinina chegou a 13 – o índice considerado normal para homens da sua idade é de 1,5 a 1,8 – e, aos 35 anos, os rins dele pararam de funcionar.
Foi a partir de então que Bez precisou iniciar a hemodiálise. Os aparelhos funcionam como um rim artificial que limpa e filtra o sangue. “É um tratamento pesado. Chegava ao hospital às 7h30 e saía às 11h30”, conta. Sem os rins para secretar a urina – a função era realizada pela máquina – os cuidados especialmente em relação à ingestão de líquidos eram primordiais. Aliviar o calor nos dois verões que enfrentou durante o tratamento foi difícil. “Sentava em uma cadeira, pegava umas pedrinhas de gelo e ia chupando para saciar a sede porque não podia tomar água”, recorda. Além disso, também precisava evitar alguns alimentos, como banana, para não ingerir potássio em excesso.
As sessões são bem desgastantes – segundo ele equivalem a uma caminhada de 20km. Durante um ano e meio de tratamento, ele conheceu muitas histórias de quem estava na mesma situação, a quem ainda chama de colegas. Ali teve contato com pessoas que estão há 25 anos na fila para o transplante e de quem também já realizou o procedimento três vezes e sofreu rejeição do organismo em todas elas. “Muitos velhinhos não resistem e morrem no meio do tratamento. Presenciei dois falecimentos. Quem não conhece o meio não dá muita importância. As pessoas se assustam quando se fala em câncer e quimioterapia, mas a situação da hemodiálise é muito complicada”, avalia. 
Por conta dos relatos que ouviu, o medo de submeter-se a um transplante era grande – especialmente pela possibilidade de rejeição ou de contrair alguma infecção hospitalar. Bez precisou pesar na balança sua situação: ou ficava dependente da hemodiálise para o resto da vida – o que restringiria férias e viagens com a família, por exemplo – ou arriscava ter uma nova chance. “Fui muito aconselhado. O psicológico fica muito abalado”, comenta. 

A cirurgia
No dia 18 de fevereiro de 2016, às 19h, seu telefone tocou. Era da Santa Casa, de Porto Alegre, avisando que havia um doador compatível – durante todo o tratamento, realizado via SUS, mensalmente os pacientes enviam amostras de sangue para acompanhamento. “No dia da ligação, eu titubeei. Eu estava em casa dando janta para as meninas, a minha esposa estava em uma reunião no colégio em que leciona. Liguei para ela: “sim ou não”? Acabei indo, mas ainda tinha medo”, recorda. Imediatamente, ele largou tudo e foi a Porto Alegre. Submeteu-se a uma última sessão de hemodiálise e passou por avaliação médica. Embora estivesse com o peso um pouco acima do recomendado, o procedimento foi autorizado. 
O rim é implantado no abdômen, logo acima do púbis, com um corte em L. Os rins do paciente não costumam ser retirados, pois acabam atrofiando. Bez entrou na UTI às 4h da sexta-feira seguinte, às 6h foi operado e acordou ao meio-dia. “De lá para cá, é vida nova. Tudo mudou”, garante. 
O doador foi um rapaz de 23 anos, esportista, morador de Rio Grande, que faleceu por conta de um traumatismo craniano após cair de bicicleta. Com base nestes dados gerais, o paciente decide se aceita ou não passar pelo procedimento. “Tive a sorte de ter um rim jovem. Com os cuidados necessários, a expectativa é que o órgão dure de 12 a 13 anos”, explica – nos casos de doadores com mais idade ou que tinham hábitos não tão saudáveis, a vida útil do órgão é bem menor. Apenas em casos de doadores vivos o rim costuma funcionar até o final da vida. Por não querer forçar os parentes a submeter-se ao procedimento – há uma série de exames e cuidados permanentes para quem doa – nem chegou a testar a compatibilidade. “Sei que bem lá na frente, quando começar a dar problema de creatinina de novo, vou ter que fazer hemodiálise e entrar na fila para um novo transplante”, acrescenta. 
O único cuidado permanente com a alimentação após o transplante é o excesso de sódio. “Não existe nenhum alimento maléfico, desde que coma moderadamente. Só tenho que cuidar com o sal”, comenta. A estratégia ao cozinhar em casa mudou. O sabor da comida é realçado com tempero verde, cebola, alho e pimenta e o sal passou a ser adicionado apenas após a finalização do prato e não mais ao longo das etapas da receita como antes.  Outras recomendações médicas incluem ingerir bastante líquido – de dois a três litros por dia – e usar filtro solar – pacientes transplantados têm risco maior de desenvolver câncer de pele. 
Antes do transplante, a hemodiálise ajudava a controlar a glicemia. Agora, por conta de alguns excessos – ele mesmo se define como um “formigão” – a Diabetes está descompensada e ele precisa fazer uso de insulina três vezes ao dia. Quando a ingestão de doces é menor, ele pode diminuir o uso do medicamento. Passado um ano da cirurgia, tempo suficiente para organismo se adaptar, o foco de Bez agora será nos cuidados da saúde como um todo, o que inclui uma alimentação mais regrada e a prática de exercícios físicos para o controle do peso.

Foto: Lurdes Pazza Fotografia

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