Série especial de reportagens: Vida de coveiro

Quem passou pelos cemitérios nesta semana para fazer sua homenagem aos entes que já partiram deve ter reparado na limpeza e organização do local. É no Dia de Finados que o trabalho daqueles que zelam pelo espaço fica mais evidente, mas os afazeres são diários. “Todos os meses, todas as semanas, todos os dias temos que manter em ordem”, relata João Carlos Dallazen, 53 anos, um dos três coveiros que atuam no Cemitério Central de Bento Gonçalves, no bairro São Francisco. Nos dias que antecedem o feriado, a equipe intensifica a rotina para deixar tudo nos trinques. Passada a data, o serviço continua – e até aumenta, devido à grande quantidade de flores secas a serem descartadas.

Seu João nem sempre foi coveiro. Já trabalhou em empresas dos ramos moveleiro, metalúrgico e da construção civil. Em 2012, ingressou na profissão e esteve afastado apenas por um período de sete meses, quando foi funcionário de uma transportadora. Neste ano, retornou ao ofício, prestando serviço para a prefeitura como terceirizado pela CCS. “Não tem estresse trabalhar em cemitério”, simplifica. No início, ele achou que poderia até entrar em depressão. Com o passar dos dias, acostumou-se. “Ninguém gosta de perder parente, inclusive eu já perdi minha mãe e sei que é difícil. Mas temos que trabalhar como profissional, dar o melhor para aquela família. Não dá para chegar chutando um vaso de flor ou batendo o caixão”, exemplifica.

Com a tranquilidade de quem parece esquecer que sua ocupação lida com um dos maiores medos dos seres humanos, seu João compara o cotidiano do cemitério ao de qualquer outra empresa. “Não muda nada. Tem que trabalhar com interesse, com dedicação”, pontua. O segredo para ele é organização e humildade. “Tem que ter a maior delicadeza com a família, calma e tranquilidade. É preciso também diálogo com os colegas. Não adianta se empurrar e não conversar, chegar e não dizer bom dia”, ensina.

Acumulando quatro anos e meio de experiência na função, hoje ele tira de letra os dias de enterro. Avisados dos sepultamentos com antecedência, os coveiros têm tempo de separar as ferramentas e materiais necessários para fechar as gavetas ou túmulos – esses últimos requerem um pouco mais de prática. As tarefas incluem limpar o local, carregar tijolos e preparar o cimento. “É uma rotina normal”, resume. Como a morte não escolhe dia e nem horário, alguns chamados aos finais de semana fazem parte do pacote. “Morreu? Nós temos que fazer sepultamento”, explica. Remoções e exumações ficam por conta de outra equipe.

Se hoje os afazeres são executados com tranquilidade, no começo nem sempre foi assim. É com lágrimas nos olhos e voz embargada que seu João rememora o primeiro funeral da carreira. “Meu Deus, era uma criancinha”, revela, após alguns segundos de pausa, querendo poupar as palavras para conter a emoção. “Quando cheguei em casa a mulher perguntou ‘tu vai aguentar’? ‘Vou tentar’, eu disse. Eu tinha pouca prática, mas daquele tempo eu aprendi muito. Pensei ‘vai ser difícil’, mas não foi difícil. Continuei, fechando gavetinha e aprendendo”, conta. “Ninguém gosta de trabalhar em cemitério, mas já viu se nós não trabalhássemos? Tem que ter coveiro”, argumenta.

Entre os percalços da profissão, ele contabiliza a árdua missão de enterrar vizinhos, amigos e conhecidos. “Tem que estar capacitado. A gente não conversa muito com a família, só faz o trabalho, senão vai querer chorar e se desesperar. Tem que ser firme”, ressalta. Pai de um casal de filhos, já aproveitou o enterro de uma criança conhecida da família para conversar sobre a morte com o mais novo, de nove anos. “Amanhã ou depois, grande ou pequeno, todos nós morremos”, sentencia. Ele acredita que a morte não deve ser tratada como um tabu ou assunto proibido. Evangélico, diz que a forma de encarar o fim da vida não mudou depois que os sepultamentos entraram para a sua rotina. “A gente já tem preparação na Bíblia. Já tem que estar preparado, não só quando morre”, afirma. O que poderia ser um fardo é tratado de forma leve. “A gente não sabe o dia de amanhã. Entre os coveiros a gente brinca: ‘hoje estamos enterrando o fulano e amanhã podemos ser nós’. Hoje posso estar aqui e amanhã um colega fazer o meu enterro”, observa.

 

Esta é a segunda reportagem da Série “Vida de…”, uma das ações de comemoração aos 10 anos do SERRANOSSA e que tem como objetivo contar histórias de pessoas comuns, mostrando suas alegrias, dificuldades, desafios e superações e, através de seus relatos, incentivar o respeito. Na última semana, você conheceu a história de Dirceu Frittoli, que está prestes a completar cem anos – relembre.