Série especial de reportagens: Vida de quem tem (quase) 100 anos de histórias para contar
Pontualmente a cada meia hora, o relógio antigo cumpre sua função de lembrar que o tempo não para e que a vida não espera. Mais do que 100 anos de vida, Dirceu Frittoli vai comemorar, no dia 10 de novembro, 36.500 dias – ou 1.752.000 badaladas do cuco – de muitas histórias para contar. A maioria delas vivida no mesmo lugar: a rua Assis Brasil, no coração de Bento Gonçalves.
“Eu nasci aqui na esquina [onde ficava a casa de sua avó], vivi aqui e pelo jeito vou continuar aqui. Mas não troco Bento Gonçalves por nenhum outro lugar no mundo”, afirma. Foi na casa em que reside até hoje – construída com colunas aparentes do lado de fora como ele sempre sonhou – que ele viveu com a esposa, Elda Maria Arioli Frittoli, já falecida. “Foi no dia 11 de dezembro de 2008”, pontua, com uma lucidez surpreendente. A mesma casa que viu seus quatro filhos (Ana Maria, Dante Ângelo, Vânia (in memorian) e Berenice), dez netos (Roberto, Ana Lúcia, Alexandre, Ricardo, Maurício, Patrícia, Eduardo, Dirceu Ângelo, Dante Alberto e Diogo Antônio) e nove bisnetos (Fernando, Luciano, Isabela, Bernardo, Davi, Nina, Arthur, João Dirceu e Pedro Henrique) serem criados. “São 10 bisnetos”, corrige, contrariando as informações que as fotos expostas nas paredes transmitem. Tem razão, o Pedro, seu 10º bisneto, deve nascer nas próximas semanas.
Qual o segredo para se viver 100 anos? Ele diz que não existe. “Sempre trabalhei e vivi sem extravagâncias. Nunca fumei, sempre pratiquei esportes. De bebida alcoólica, só vinho nas refeições. Se esse é o segredo, eu não sei”, diverte-se. Logo na primeira pergunta, já era possível saber que a entrevista não seria nem um pouco convencional. Aliás, esse não era mesmo o objetivo. Prestes a completar um século, o senhor de cabelos ralos e grisalhos, de fala lenta e risada contagiante, parece flutuar entre diferentes personalidades: passa de um viúvo que recorda com uma triste exatidão o dia da morte do amor de sua vida a um idoso que demonstra a juventude do espírito implicando com a cuidadora e suas “denúncias”.
“Você está proibida de me denunciar”, finge xingar Noemi, que acompanha a família há mais de dez anos. “Semana passada ela contou que eu fui na serra. E também no dia que eu saí de carro”, conta, indignado. Não, você não leu errado. Poucos dias antes de completar 100 anos de vida, seu Frittoli ainda mantém a marcenaria como hobby e tem Carteira de Habilitação. O último documento chegou em julho, com validade de um ano. “Quando fui fazer a renovação, perguntei para o médico que fazia o exame quanto tempo de habilitação ele me daria e ele falou três anos. Fiquei contente. Aí quando a carteira chegou, vi que era válida somente por um ano. Quando eu for renovar, se eu o encontrar, quero saber se ele se deu conta do engano”, promete.
A passagem do tempo não é desculpa para esquecimentos. Foram 23 anos trabalhando como bancário do Banrisul, outros tantos na indústria moveleira (na empresa Madesa), e duas décadas acumulando a função de gerente e de funcionário administrativo das lojas Alfred, de seu amigo de longa data Willy Koff. “Era dia 1º de setembro de 1974 e ele me convidou para trabalhar. Falei que não, que estava cansado, que havia recém me aposentado e que queria aproveitar a vida. Mas ele veio aqui em casa, insistiu e eu aceitei, prometendo para mim mesmo que seria somente por três ou quatro meses. No dia 1º de setembro de 1994 eu pedi demissão, exatamente 20 anos depois. Mas era época de balanço e o então gerente havia faltado. E eu fui ficando para ajudar e se passaram mais alguns meses” relembra.
Às vésperas de um de seus aniversários mais importantes, seu Frittoli parece esquecer apenas da idade que tem e mantém o fôlego para “fugidinhas”. “Não dá para descuidar”, avisa Noemi. Que o diga uma das filhas, Berenice, que virou motorista particular depois de proibi-lo de dirigir sozinho e que de tempos em tempos leva sustos com as peraltices do pai. “O telefone toca e é a Noemi dizendo que ele saiu de carro no meio da tarde. Ou que ele está com a serra ligada, ou tentando subir no sótão para consertar algo. Temos que ficar de olho o tempo todo”, conta. “Da próxima vez, eu levo a Noemi junto, assim ela não fica preocupada e não me denuncia”, diverte-se seu Frittoli, sob olhar de incredulidade e uma posterior risada da cuidadora. O carro, um Taurus ano 1995, fica sempre à disposição, assim como a serra que ele usa até hoje para cortar lenha. Escondido, obviamente.
“Ah, se não fosse o ‘treco’…”, suspira o aniversariante, apontando para o peito em referência ao marca-passo que fez com que ele abandonasse uma das suas maiores paixões (e seu esporte favorito): o tênis. Mas não se engane: isso faz apenas 16 anos. Ou seja, ele praticou tênis até os 84. Hoje, o amor fica restrito a campeonatos mundiais da modalidade – ele assiste a todos na televisão – e à torcida pelo seu time de futebol preferido: o Grêmio. “Meu coração está ótimo graças a Deus e ao Dr. Airton [Branchi, cardiologista]. O Grêmio testa ele de vez em quando”, ri. Na sala, um antigo tabuleiro de xadrez revela outra de suas paixões.
Consumidor voraz de jornais, revistas e noticiários de televisão, seu Frittoli admite por um instante que acabou se deixando contaminar pela paixão da cuidadora por novelas. “Eu nem assisto mais tanto. É só assistir o primeiro capítulo e a gente já sabe o que acontece no final, são todas iguais”, desconversa. Apaixonado por política, ele se diz desiludido desde a ditadura: “Desde criança eu sempre falei que ainda não nasceu a pessoa que vai dar um jeito no Brasil, não consertaram quando tinham que consertar”. Uma edição recente da Revista “Veja” o distrai por alguns instantes. “O Sérgio Moro está prendendo todo mundo. E bem que ele faz!”, aponta para a capa que mostra a foto do ex-presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, com a manchete “Essa cela vai lotar”.
Para não deixar a vida cair na monotonia, seu Frittoli faz questão de manter as visitas ao sítio da família, na linha Alcântara, e à casa de praia, onde costumam veranear. “Mas Bento Gonçalves é onde eu amo estar. Vi essa cidade crescer, locais desertos virarem cheios de casas, arranha-céus serem construídos, até o primeiro paralelepípedo ser colocado”, relembra, dando uma nova amostra de uma lucidez surpreendente: sabe citar obras feitas por determinados prefeitos, a ordem de quem governou o Rio Grande do Sul e até como era feito o transporte das cargas de vinho a São Paulo, em barris acondicionados em carroças puxadas por animais.
Dezesseis páginas de anotações depois, me despeço recusando o convite para tomar um café. “É por isso que você vai viver até os 100 anos também. E eu vou estar aqui para ver”. Ah, se ele soubesse quanto café eu havia tomado nas horas que antecederam o nosso encontro.