Série especial: Vida de merendeira, criadora da ”Polenteca”

Uma receita de panqueca que leva farinha de milho na massa, recheada com talos e folhas de beterraba – a polenteca – rendeu à merendeira Daniela Fernanda Felizardo, de 42 anos, uma viagem para o Caribe e um prêmio de R$ 6 mil. Desde o início do ano, ela trabalha na Escola Municipal Infantil Feliz da Vida, no bairro Borgo, e na semana passada a iguaria de sua autoria foi escolhida como a melhor da região Sul no 2º Concurso Melhores Receitas da Alimentação Escolar, em final disputada em Brasília. “Eu amo cozinhar, não me imagino fazendo outra coisa que não seja na cozinha. Meu marido é dentista. Eu poderia me sentar no consultório dele e virar secretária, mas eu seria infeliz. Eu não me imagino fora da cozinha, enquanto eu viver eu vou cozinhar”, garante ela, que tem 19 anos de experiência como cozinheira e que está prestes a concluir a graduação em Gastronomia pela Unisinos. 


Daniela tem 19 anos de experiência como cozinheira e está concluindo a gradução em Gastronomia (Foto: Carina Furlanetto)

Natural de São Leopoldo, há oito anos Daniela reside em Bento Gonçalves. Ela herdou do pai, o chef Oscar Roberto Felizardo, a paixão pela cozinha. “Eu gosto de ver as pessoas reunidas comendo o que eu fiz”, afirma. O dinheiro ganho no concurso será investido em utensílios e equipamentos. No período de recesso da escola, ela já tem a agenda cheia com encomendas para ceias de Natal e Ano Novo. Quando visita os parentes, com frequência é requisitada para comandar as panelas. “Para quem gosta é um prazer, não um sacrifício”, complementa. Ela ainda não preparou a receita digna de medalha de ouro para o marido, Olavo Pletsch, e nem para os filhos, Larissa, de sete anos, e Leonardo, de 21, mas sabe que esse dia não tardará a chegar. “Todo mundo quer conhecer a polenteca”, destaca.    

O concurso, que recebeu mais de duas mil inscrições em sua primeira etapa, visa valorizar o papel de merendeiras e merendeiros que trabalham diariamente em prol da alimentação de qualidade nas escolas públicas do Brasil, promover a alimentação saudável e mobilizar a comunidade escolar para a temática da educação alimentar e nutricional. A iniciativa também é uma oportunidade de valorizar a categoria, que tem um dos pisos salariais mais baixos em várias regiões do país. “É uma das profissões essenciais, porque criança mal alimentada não aprende”, observa.  

Entre os dias 22 e 27 de outubro, as 15 merendeiras selecionadas para a Etapa Nacional (três de cada região) participaram de uma programação intensa que compreendeu curso de Boas Práticas e Elaboração de Receitas, preparação e degustação das receitas e apresentação da atividade de Educação Alimentar e Nutricional para os jurados e a cerimônia de premiação. Acostumada a se aventurar de moto com o marido, Daniela, assim como muitas das finalistas, nunca havia viajado de avião e conta que ficou com medo na decolagem e na aterrissagem. “Quando deu três batidas do avião no chão com o trem de pouso, pensei: preciso primeiro gastar o dinheiro, não posso morrer”, brinca. Nos dias em que esteve na capital federal, ela conta que teve uma “semana de diva”, com direito a banho de banheira e ofurô, hospedagem em hotel cinco estrelas e farto buffet nas refeições. 

A criação 


 

O município já havia participado da primeira edição do concurso há dois anos, mas não avançou para as fases finais. Para a disputa de 2017, a estratégia foi convidar uma escola para desenvolver uma receita que se enquadrasse nos critérios do edital. Renata explica que a Feliz da Vida foi escolhida pois a alimentação saudável foi o tema definido pela direção para ser trabalhado com as crianças. A escola conta com 134 alunos, sendo 84 em turno integral, que fazem cinco refeições na escola. 

A diretora da escola, Cristina Buaszczyk, explica que fez o convite à equipe, composta por duas merendeiras e uma auxiliar de cozinha. Daniela foi quem aceitou o desafio. Além de uma receita salgada e inédita, as exigências para participar do concurso incluíam uso de alimento regional, de produtos da agricultura familiar e de alimentos in natura ou minimamente processados (conforme orientações do novo guia alimentar – a polenteca não leva nenhum ultraprocessado no preparo). O critério de reaproveitamento não estava no edital e acabou sendo um diferencial da receita – a dificuldade de encontrar o legume com as folhas e o talo em supermercados e fruteiras é um indício de que o ingrediente ainda é pouco explorado. 

Os primeiros testes foram feitos na escola. Cristina conta que já haviam definido que o prato seria uma panqueca, mas estavam em dúvida entre uma opção com farinha de trigo integral e outra com farinha de milho. “Provando a gente viu que a massa integral ficava muito seca e se optou pela farinha de milho, até pela ‘Bela Polenta’ ser o produto mais típico da região”, destaca. O recheio com moranga também evoca outro produto típico da agricultura familiar. 

Ao introduzir os talos, houve um pouco de resistência da equipe. “Tinha que dar para experimentar e depois contar o que era”, comenta a diretora. As crianças também tiveram oportunidade de se envolver no processo, montando a panqueca. Daniela explica que não foi uma receita feita apenas para bater as fotos para a inscrição no concurso, pois já fazia parte do dia a dia da escola. “Para mim, o liquidificador já avisa o ponto da receita”, brinca.  

Os cardápios servidos nas escolas da rede municipal são elaborados pela Smed, mas algumas alterações são permitidas nas receitas conforme a necessidade de aproveitamento dos alimentos disponíveis. A nutricionista explica que as escolhas seguem critérios preconizados pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) para cada modalidade de ensino, com adaptações no caso de alunos com intolerâncias. A polenteca já faz parte do caderno de receitas repassado às merendeiras na última capacitação feita pela prefeitura e fará parte do menu servido às crianças. “Um dos critérios era que a receita fosse de fácil replicabilidade”, explica Renata. 


 

Nervosismo na etapa final

O júri foi composto pelo chef de cozinha do restaurante Bloco C, um dos mais antigos de Brasília, Marcelo Petrarca; Mariana Rocha, representante do Centro de Excelência Contra a Fome do Programa Mundial de Alimentos da ONU; Lorena Medeiros, do Conselho Regional de Nutrição em Brasília; Alda Oliveira, presidente do Conselho de Alimentação Escolar do Estado de Roraima; e Sofia Marinho, estudante do sexto ano da CEF 104 Norte, em Brasília. 

Daniela ao lado da nutricionista Renata durante o preparo da receita para os jurados (Foto: Mariana Leal/MEC)

A escolha das receitas vencedoras de cada região não poderia ser feita sem que os cinco jurados degustassem as criações das merendeiras. Daniela conta que a prova de apresentação dos pratos foi digna de competições culinárias como o MasterChef, com tempo cronometrado,  chefs supervisionando as bancadas durante o preparo, questionando etapas da execução. Além, claro, de tudo estar sendo filmado e fotografado. “Teve menina que quase abandonou a bancada”, recorda.  “Quando anunciaram que faltavam cinco minutos, as duas começaram a tremer”, relata a nutricionista da secretaria municipal de Educação (Smed), Renata Geremia, que auxiliou a merendeira, para picar os alimentos, higienizar e lavar a louça. 
Daniela foi elogiada pelos conhecimentos na área, que podiam ser comprovados pela prática em picar alimentos. A organização disponibilizou os ingredientes nas quantidades anunciadas na receita e os pratos deveriam sair com peso e tamanho corretos. Um dos truques que ajudou a deixar a aparência impecável foi ter levado um pouco de açafrão – o fornecido pelo concurso não era tão amarelo, o que alteraria a cor do prato. Ela lembra que um dos jurados lhe perguntou o que as crianças comentavam a respeito da aceitação do broto da beterraba dentro da receita. “Eu dizia para eles que eram estrelinhas que estralavam na boca”, respondeu.  


Premiação aconteceu em Brasília (Foto: André Nery/MEC)

Na cerimônia de premiação, ao ouvir o seu nome como vencedora, Daniela quase não acreditou. Foi, em suas palavras, uma “explosão de sentimentos”. Participar do concurso lhe permitiu conhecer diferentes realidades a partir dos relatos feitos pelas outras concorrentes – de cantinas que funcionam em um barco nas regiões ribeirinhas até cozinhas com chão de terra e fogão a lenha. Há casos até de merendeiras que levam conchas de casa, pois a escola não tem utensílios suficientes. “Isso é amor pelo que a gente faz”, resume. Ao final da premiação, ela enviou uma mensagem para a diretora, agradecendo a oportunidade de trabalhar em uma escola bem equipada, em que não faltam alimentos. “Tem dias que o almoço deles é igual a um farto almoço de domingo na casa da gente, com frango assado e salada de batata”, explica. 

Texto: Carina Furlanetto