Série especial: vida de Papai Noel Voluntário

Há 18 anos, o pedreiro Noracílio da Rocha Gil trocou de nome, deixou de ser conhecido como Gil e passou a ser chamado de Papai Noel. Os que desconhecem a sua história, em um primeiro momento, podem não entender o porquê de tal apelido para alguém atualmente com 60 anos, cabelos pretos e um simples bigode a cobrir a face. Mas basta descer um pouco o olhar e mirar na estampa da camiseta que há quatro anos virou seu uniforme. Com uma cartinha em mãos, o desenho do Bom Velhinho ocupa o centro da peça, abaixo de três palavras em letras garrafais na cor vermelha: Papai Noel Voluntário. Se lhe faltam a tradicional cabeleira e barba branca, sobra bondade.

O que começou com a entrega de balas e pirulitos pelo bairro Santa Marta – onde mora há 35 anos – evoluiu para uma grande festa no mês de dezembro, com direito a distribuição de lanche e presentes para 1.200 meninos e meninas. “Não tem fim lucrativo nenhum, é só por amor às crianças mesmo”, afirma. Autônomo, ele reserva mensalmente uma cota do seu salário para cobrir parte das despesas que tem com o evento. A esse valor, soma-se o que arrecada vendendo latas de alumínio que recolhe ao longo do ano – mesmo com doações da comunidade, de empresas e de voluntários, alguns gastos acabam saindo do seu bolso.

Natural de São José do Ouro, Gil cresceu vendo o pai e o padrinho praticando boas ações no período natalino. Eles moravam no campo e, no dia 24 de dezembro, o pai costumava matar uma vaca e repartir a carne com os capatazes. “Naquela época, churrasco era só uma vez ou duas por ano”, lembra. Para completar a ceia, o padrinho, dono de uma venda, dava uma garrafa de vinho e outra de refrigerante para cada um deles. “Eu via aquilo e achava muito bonito. A gente se inspirou nisso aí”, conta.

O começo

A estreia no voluntariado foi impulsionada pela história de um conhecido que, após ingerir grande quantidade de bebida alcoólica em uma véspera de Natal, voltou para casa agressivo e sem levar sequer uma bala para os filhos. “Aí eu pensei: vamos fazer alguma criança feliz no lugar desses pais”, revela.

O valor inicial para a compra dos doces e do tecido para encomendar as vestes características do personagem natalino veio da venda do equipamento fotográfico que usava para trabalhos como fotógrafo em batizados e casamentos. Por dez cruzeiros, Gil também adquiriu uma carroça – “18 anos atrás era dinheiro”, friza. “Percorremos todo o bairro Santa Marta em cima de uma carroça de boi dando bala e pirulito”, relata.

No ano seguinte, ele decidiu repetir a dose, mas desta vez sem a carroça, pois estava quebrada. Na companhia de uma amiga fazendo as vezes de Mamãe Noel, ele percorreu o bairro a pé quando uma moça ofereceu carona em uma caminhonete – a dupla chegou a recusar outras ofertas pela falta de espaço nos carros, já que cada um carregava um saco de guloseimas com cerca de 20kg. Ele recorda até hoje das lágrimas e do abraço sincero que recebeu da moça ao final da missão. “Nunca imaginei que levaria o Papai Noel”, disse ela.

No terceiro ano, o apoio da comunidade começou. “Eu vi que a gente estava gastando bastante nestes dois anos e começamos a aceitar ajuda. Cada ano foi crescendo. Hoje, sem ajuda não conseguiríamos fazer, porque são muitas crianças para as quais estamos dando presentes, balas e pirulitos”, pondera. Nas proporções que adquiriu, se a festa precisasse ser paga, custaria mais de R$ 15 mil, segundo os cálculos de Gil. Graças à ajuda que vem de todo o canto da cidade, ele desembolsa em torno de R$ 3,5 mil. “Vale a pena. Sempre trabalhei, sempre tive serviço, então a gente sempre tira um pouco de si para quem precisa”, declara.

Solidariedade o ano todo

A transformação em Papai Noel também trouxe mais solidariedade para a vida de Gil. Além dos trabalhos natalinos, ao longo do ano ele distribuiu ranchos e fraldas geriátricas para famílias necessitadas. “Sai do caixa três”, brinca.

Os preparativos para o Natal iniciam em setembro, quando os primeiros brinquedos começam a chegar. Carrinhos, bonecas e ursos de pelúcia são armazenados em uma casinha de pouco menos de 9m², construída nos fundos do seu terreno. Perto da data da festa, o espaço fica pequeno e a cozinha da família, o quarto da neta e até a casa dos vizinhos também são tomados pelos presentes. É por volta desta época que Gil adota definitivamente o uniforme descrito no início do texto. Com os telefones de contato estampado nas costas, ele vira uma espécie de outdoor ambulante. “99% da divulgação quem faz sou eu”, orgulha-se. Seu armário tem cinco destas camisetas e ele já mandou fazer outras cinco para não correr o risco de precisar sair de casa sem a identificação.

Desde a confecção das embalagens até a distribuição do lanche durante o evento, Gil conta com uma equipe que chega a 50 voluntários. “Todo mundo tira um pouco do seu serviço para fazer isso”, salienta. Antes de repousarem nos pacotes à espera dos novos donos, os brinquedos passam por um check-up. A maior transformação talvez fique por conta das bonecas, que recebem um tratamento digno de princesa: banho, cabelo, maquiagem e roupas novas. “Sai que nem se fosse da fábrica”, garante.

Neste ano, as doações chegam em um ritmo mais lento – ele culpa a crise. Mesmo assim, acredita que até a data da festa conseguirá reunir a quantidade necessária de presentes. Comida, bebida, embrulhos, enfeites e infraestrutura já estão praticamente garantidos e, pelo controle de Gil, faltam apenas os guardanapos que irão envolver os cachorros-quentes.

No dia que antecede a festividade o trabalho fica mais puxado: é quando ele busca as doações perecíveis e inicia a organização do espaço. É o próprio Papai Noel o encarregado do molho do cachorro-quente. Uma receita natural, assegura, pois leva apenas tomate, cebola e salsa – caso não consiga doação dos ingredientes, ele mesmo compra.

O dia da festa

Há três anos Gil parou de fazer a distribuição dos presentes em cima de uma caminhonete – problema nas costas, segundo ele. O ginásio da escola Noely Clemente do Rossi, no bairro Santa Marta, passou a sediar o agora evento, com direito a lanche e animação. O dia do evento é o mais corrido do ano para ele. No ano passado ele não conseguiu nem almoçar, “Não deu nem tempo, nem fome”, lembra.

Os números da última edição impressionam: participaram 1.200 crianças, 23 pessoas especiais e 39 gestantes. Foram distribuídos 500 litros de suco uva, 60kg de açúcar em forma de algodão-doce e 2.700 cachorros-quentes (300 pães sobraram e foram doados para a escola). “Entre ‘grandes’ e ‘pequenos’, foram umas 1.800 pessoas. No ginásio não teve lugar, teve que ficar gente na rua”, contabiliza. “Foi uma grande festa”, comemora. Além de Gil, outros dois Papais-noéis e mais duas Mamães-noéis ajudam na distribuição das lembranças. A animação da garotada fica por conta da Galinha Pintadinha e de um casal de palhaços.

Um dos fatos que chamaram a atenção do voluntário foi a participação de pessoas com necessidades especiais. “O último que pegou o presente chegou atrasado. Ele tem uns 40 e poucos anos, mas é criança ainda. Ele pegou o presente dele, deu um grito, levantou e mostrou para o povo. Era um carrinho grande. Isso chama atenção da gente, quando a gente vê a alegria deles”, descreve.

A festa reúne crianças de bairros como Santa Marta, Fátima, Santa Helena, Santa Rita, Municipal, Vila Nova, Zatt, Ouro Verde. No último ano, cinco ônibus foram usados para o transporte dos participantes. “De todos os bairros vem gente e todos saem contentes”, confirma. Parte dos presentes – ele estima que nos últimos dois anos as arrecadações chegaram a duas mil unidades – são distribuídos também em bairros e localidades carentes do município. Para celebrar a maioridade do projeto, em 2016 Gil também visitará 18 famílias de pessoas acima de 70 anos. Além de receber um pacote de bombom do Papai Noel, os vovôs e vovós ganharão um ombro amigo para conversar e trocar histórias.

Para manter a magia viva

A figura do Bom Velhinho e o significado do Natal mudou muito desde a infância de Gil. Naquela época, ele relata que o único presente eram balas de banana e biscoitos caseiros. Ele ainda mantém viva na memória as lembranças de quando na véspera separava um prato para receber o presente e um pouco de pasto para o burrinho que supostamente carregaria o Papai Noel. “Era bem diferente. A gente nem esperava clarear o dia e ia correndo ver o pratinho. Cada um tinha o seu”, recorda. Naquele tempo talvez a magia durasse um pouco mais. Ele conta que já era grande quando descobriu que as surpresas eram responsabilidade dos pais.

Hoje, ele luta para manter viva a magia do Natal. Sua neta, atualmente com 12 anos, só aos oito descobriu que o vô se vestia de Papai Noel – ela o flagrou trocando de roupa na casinha dos brinquedos. Para não gerar desconfiança, a família contava que ele vivia na mata próxima a casa e que não tinha onde guardar os presentes e nem como lavar seus trajes vermelhos.

Ao longo destes 18 anos, milhares de pessoas ajudaram a construir a fama de Gil. Seu único pedido caso escrevesse uma carta para o Bom Velhinho seria condições de continuar com o voluntariado. “Eu pediria muita saúde, alegria e paz para todos nós. Eu não iria querer presente”, diz. Quando questionado se já conseguiu tudo o que gostaria, ele responde: “Ainda faltaria alguma coisa, mas a gente sempre dá um jeito. Tenho minha casa, tenho meu carro, tenho meu serviço. Então gostaria de sempre ter saúde para poder continuar o que estamos fazendo”, esclarece. Motivado pelo sorriso no rosto que recebe a cada brinquedo entregue, ele não pensa em parar tão cedo. “Se aposentar? Não, o Papai Noel não vai se aposentar: vai continuar até os seus 200 anos”, conclui.

Como ajudar

A edição deste ano da festa do Papai Noel Voluntário já tem data: será no dia 10 de dezembro, a partir das 14h, no ginásio da escola Noely Clemente de Rossi. Gil já está aceitando doações de presentes para meninos e para meninas (carrinhos, bonecas e ursos de pelúcia, preferencialmente). Caso já venham embrulhados, os brinquedos podem ser entregues até mesmo no dia do evento – previamente identificados como masculino ou feminino. Neste ano também haverá caixas de coleta em alguns pontos da cidade. Mais informações pelos telefones (54) 99992 6587 ou (54) 3452 2012.

 

Esta é a terceira reportagem da Série “Vida de…”, uma das ações de comemoração aos 10 anos do SERRANOSSA e que tem como objetivo contar histórias de pessoas comuns, mostrando suas alegrias, dificuldades, desafios e superações e, através de seus relatos, incentivar o respeito.

 

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